Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
As lições de Zelensky aos brasileiros
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Encontrei, legendei em português e publiquei no Twitter a cena do programa satírico "Servo do Povo", lançado em 2015, em que Vasyl Petrovych Holoborodko, o professor de história interpretado pelo então comediante Volodymyr Zelensky, faz um desabafo contra a corrupção dos políticos da Ucrânia e o conformismo do povo em escolher entre dois corruptos nas eleições do país do leste europeu.
Filmado por um aluno, o discurso viraliza e ele acaba sendo eleito presidente na ficção, o que também veio a acontecer na vida real com Zelensky em 2019, em meio à onda de protesto, surgida pelo mundo, contra a classe política dominante - ou, de modo mais geral, o sistema, o establishment, o que inclui as elites econômicas e seus oligarcas.
"Estou farto e cansado disso. Por que nossos políticos chegam ao poder e cometem os mesmos erros? É porque eles são matemáticos. A única coisa que eles sabem é dividir, somar e multiplicar suas próprias riquezas!"
"Petrovych, nunca ouvi você usando esse linguajar! Por que ficou tão revoltado?"
"Porque estou farto e cansado dessas merdas. Agora fazem crianças construírem as cabines! Você sabe por que temos vidas de cão? É porque começamos nossa escolha nas cabines! Você entende? Não há quem escolher! Estamos escolhendo entre dois FDP! Tem sido assim por 25 anos seguidos! Você sabe o que é interessante? Nada vai mudar desta vez! Você sabe por quê? É porque você, meu pai e eu vamos escolher um FDP de novo! É porque 'sim, ele é um FDP, mas pelo menos é melhor que os outros'! Então esses FDP chegam ao poder e roubam e roubam e roubam! Esses putos têm nomes diferentes, mas agem da mesma maneira. E ninguém dá a mínima! Eu não dou a mínima, você não dá a mínima, ninguém dá a mínima! Se eu pudesse ficar lá só uma semana, eu mostraria a eles! Eu gostaria que todo professor vivesse como presidente! E que todo presidente vivesse como professor, cacete! Estou falando pra você como professor de história. Mas você não dá a mínima! Bando de FDP!"*
Esse discurso de terceira via segue fazendo sentido no Brasil, porque, em 2018, ele foi usurpado pelo então deputado federal Jair Bolsonaro, que se fez de 'outsider' na corrida presidencial e, após virem à tona as rachadinhas em gabinetes de sua família, agiu da mesma maneira pró-sistema que velhos corruptos, com os quais ainda reforçou aliança.
O slogan real da campanha sarcástica de Zelensky, também ela baseada em discurso anticorrupção e redes sociais, pelo menos assumia, ao contrário do decepcionante "Posto Ipiranga" de Paulo Guedes, que "se não tem promessa, não tem decepção". Muito pelo contrário, o que se tem agora na Ucrânia é um presidente apoiado por mais de 93% dos cidadãos, dizendo para os EUA (e para os livros de história) que "preciso de munição, não de carona" e defendendo, finalmente com armas e dinheiro fornecidos por países da União Europeia, a vida de seu povo e a independência de seu país contra a invasão e os bombardeios da Rússia de Vladimir Putin, aliado de Bolsonaro.
Depois de enfatizar a posição de "neutralidade" do Brasil (que seria amenizada pela diplomacia brasileira, compelida a votar na ONU contra os ataques russos) e também considerar exagerado o uso da palavra massacre (quando os ucranianos já contavam 352 mortos, sendo 16 crianças), o presidente "isentão" pró-Putin repetiu em tom de crítica que o povo da Ucrânia confiou a um comediante o destino da nação (declaração logo destacada em agência estatal da Rússia, equivalente à EBC bolsonarista).
Como resumi no Twitter no dia 1º de março:
"Expectativa de Bolsonaro: guerra acaba rapidinho, tudo volta ao normal, agro ganha adubo e apoia sua campanha, Putin dá mãozinha virtual.
Cenário: guerra se estende, Europa se une contra Putin, neutralidade [de Bolsonaro] isola Brasil, sanções abalam Rússia e Belarus, não há garantia de adubo."
A própria ministra Tereza Cristina, da Agricultura, derrubou a principal desculpa dos bolsonaristas para passar pano para o tirano russo, ao declarar que "o Brasil é um importador de fertilizantes de vários países do mundo", que "temos outras alternativas para poder substituir" os insumos russos e que não há "motivo para pânico" em relação à possibilidade de escassez. Para tratar do assunto, ela afirmou também que vai ao Canadá, um dos países, como Alemanha e Israel, exportadores de potássio.
Na falta de argumentos confessáveis para manter sua posição, Bolsonaro compartilhou em grupos de Whatsapp um texto que critica a atuação dos EUA no atual cenário geopolítico e que exalta a Rússia como integrante do seleto grupo de países que seria capaz de enfrentar a "Nova Ordem Mundial": "Só existe a Rússia, a China e a Liga Árabe capaz de enfrentar a NOM... O Brasil está no radar da NOM e de toda a esquerda... a NOM está pronta para instalar um governo hegemônico mundial e o Brasil será a horta dele! O comunismo se transmutou, voltou para o seu berço europeu..."
Em nome do combate ao poder hegemônico dos EUA, o PT de Lula passa pano para a perseguição de dissidentes das ditaduras de Cuba, Venezuela e Nicarágua. Em nome do combate ao poder hegemônico da NOM, o bolsonarismo está disposto a passar pano para a sanha imperialista e assassina de Putin, que, por sua vez, em nome da alegada "desnazificação" da Ucrânia, bombardeia o memorial do Holocausto em Kiev e usa mercenários neonazistas para perseguir o presidente ucraniano, filho de judeus. Quanto mais torpes são as ações individuais, maior a propaganda contra inimigos forjados.
Como a Ucrânia, porém, entrou na pauta eleitoral brasileira e o derretimento nas redes sociais preocupa o bolsonarismo, até a militância virtual de gabinete ligada aos filhos de Bolsonaro já dá sinais de que talvez, quem sabe, o presidente devesse condenar a invasão, em vez de manter com o Itamaraty o atual morde-e-assopra a Rússia, dobradinha na qual cabe a ele assoprar o cangote do ex-agente da KGB comunista.
Bolsonaro jamais aprende, mas a terceira via, que cobrou dele essa condenação, deveria se espelhar ainda mais em Zelensky, tanto no candidato fictício quanto no presidente real. O motivo é simples: melhor ter sangue nos olhos do que nas mãos.
[* Assista ao vídeo: aqui.]
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