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Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O papel que Bolsonaro cumpriu

Colunista do UOL

04/11/2022 13h59

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A vitória de Lula sobre Jair Bolsonaro por 2.139.645 votos abre uma oportunidade para o surgimento de lideranças que não compactuam nem com as práticas da esquerda petista, nem com tudo que fez o presidente perder a eleição: o negacionismo na pandemia, o reacionarismo aloprado, a pregação armamentista, os rachadões familiares, a sabotagem do combate à corrupção, o orçamento secreto, a insensibilidade com os pobres, a desinformação orquestrada, os escândalos na Educação e no Meio Ambiente, e as tentativas de assassinato de reputação de quem expôs esses e outros abusos.

O PT passou quatro anos fazendo uma oposição de mentirinha, porque não apenas se beneficiou da frente ampla pela impunidade que Bolsonaro integrou para blindar Flávio, como também apostou que o presidente seria o adversário mais fácil a ser batido na corrida eleitoral, em razão de seus próprios atos e declarações. Lula jamais mobilizou correligionários em prol do impeachment, porque avaliou que só o antibolsonarismo poderia derrotar o antipetismo, remanescente em dezenas de milhões de brasileiros.

Do outro lado, o pensamento era o mesmo, com sinal trocado. "Por mim, se fosse pensar politicamente, é muito melhor o Lula solto", disse Eduardo Bolsonaro em 11 de novembro de 2019, em sessão da Comissão de Constituição e Justiça, uma semana após a soltura do petista. "O Lula solto vai reviver aquele sentimento antipetista que reuniu todo mundo nas ruas para tirar Dilma Rousseff, mas muito maior".

Não foi o suficiente, claro. Apesar do crescimento no Norte, no Nordeste e no Centro-Oeste em relação ao segundo turno de 2018, Bolsonaro perdeu 144.237 votos no Sul e 1.308.180 no Sudeste, regiões onde o PT ganhou, respectivamente, 1.597.689 e 7.777.307 votos. Ou seja: o presidente perdeu seus próprios eleitores em duas regiões carregadas de votos de opinião e viu Lula disparar em relação a Fernando Haddad, com uma frente ampla que, no segundo turno, ainda abarcou Simone Tebet, Marina Silva, Henrique Meirelles e economistas do Plano Real, como Persio Arida, Edmar Bacha, Arminio Fraga e Pedro Malan, além do já apoiador André Lara Resende.

O lulismo juntou os diferentes para derrotar os antagônicos, enquanto o bolsonarismo incluiu os diferentes entre os antagônicos, juntando os iguais para derrotar a si próprio, como antecipei em 22 de maio de 2020, no vídeo "A breve marcha de volta para o gueto". Estava tudo lá. Bolsonaro, seus filhos e propagandistas "não contam com a cumplicidade e o silêncio de todos os liberais e conservadores" sobre suas sujeiras, por mais que achincalhem como "isentão", e agora culpem pela derrota, quem não se deixou rebaixar moralmente em nome do combate ao PT. Eles perderam o eleitorado independente, porque há limites e consequências para a enganação e a petulância.

Os eleitores gaúchos e capixabas também impuseram esses limites, ao repudiar os candidatos bolsonaristas Onyx Lorenzoni e Carlos Manato. No último debate de TV, eles disseram, respectivamente, que "a melhor vacina que existe é pegar a doença" e que a pandemia "foi uma farsa". Assim como a reação a tiros e granadas de Roberto Jefferson contra a Polícia Federal e a perseguição armada de Carla Zambelli pela rua a um homem que a ofendeu, as falas não foram episódios aleatórios, mas ecos das diretrizes do presidente. Bolsonaro preferiu incitar o uso de armas de fogo por quem sentisse sua liberdade ameaçada a dialogar com governadores durante a crise sanitária. Preferiu culpar uma hashtag ("fique em casa") pelos problemas do país a assumir a responsabilidade por ter atrasado e desestimulado a vacinação.

Frases como "vacina é prioridade", "meu filho vai pagar pelo rachadão", "recuso-me a comprar apoio com orçamento secreto", "vamos aprovar a reforma administrativa, mesmo tirando benesses de parlamentares e da cúpula militar" poderiam ter mudado o rumo dos acontecimentos, se tivessem sido devidamente colocadas em prática.

"O problema surgiu", segundo Hamilton Mourão, "quando aceitamos passivamente a escandalosa manobra jurídica que, sob um argumento pífio e decorridos 5 anos, anulou os processos e consequentes condenações do Lula." Na verdade, aceitaram sem pressão e desmobilizaram antipetistas antes, durante e depois, porque também queriam a anulação do processo contra Flávio, o que veio a acontecer em moldes similares.

Mas não foi só isso.

Depois que Dias Toffoli abriu o inquérito das fake news, a família Bolsonaro sabotou a CPI Lava Toga, porque o então presidente do STF segurava as investigações sobre o 01, como apontei no artigo "Os articuladores da impunidade", de 13 de setembro de 2019, citando ainda o acordão anterior, estabelecido entre Toffoli e Jorge Oliveira.

Onde estavam os bolsonaristas?

Quando o STF começou a julgar a prisão em segunda instância, Bolsonaro mandou Carluxo apagar do Twitter a defesa da medida, que nunca mais voltou a ser defendida pela base parlamentar do governo, apesar da existência de PEC e PL neste sentido. "O presidente não fez nada e, na verdade, o que a gente sabia é que o Planalto comemorou quando o Lula foi solto, lá em 2019, porque ele entendia que aquilo beneficiava ele eleitoralmente. Então ele não trabalhou para manter a execução [da pena] em segunda instância", relatou Sergio Moro em 2021, antes da aliança contra a volta do PT.

Onde estavam os bolsonaristas?

Quando o STF começou a julgar o caso do triplex do Guarujá, Bolsonaro avalizou votos pró-Lula ("se tiver que votar para absolver o Lula no processo, que vote!") de Kassio Nunes Marques, o primeiro ministro indicado pelo presidente à Corte, mesmo já tendo sido duas vezes nomeado pelo petista em sua carreira.

Onde estavam os bolsonaristas?

Agora que Bolsonaro perdeu a eleição, parte deles foi bloquear estradas e reforçar os pedidos golpistas de intervenção militar e federal que afastaram outros eleitores. O 'MST' verde-amarelo chorou o leite derramado durante os três dias em que o presidente se omitiu, primeiro com silêncio, 44 horas depois com um pronunciamento ambíguo e finalmente com um apelo pela desobstrução das vias, quando os atos já minguavam.

Nove meses antes do resultado, publiquei na coluna o artigo "É melhor rachar a direita que salário de assessor", que terminava assim:

"Os antipetistas estariam unidos em 2022 se parlamentares e profissionais da comunicação que buscavam cativar esse público tivessem recusado o poder, o microfone, o lucro e a fama oferecidos a partir de 2019 a qualquer oportunista disposto, ou disposta, a passar pano para a sujeira dos Bolsonaro, turbinada pelas investigações de peculato, reveladas somente após a eleição.

Essa gente indecente, que há anos carrega o cadáver político insepulto do presidente e desconecta da realidade massas de manobra ligadas em rádios e TVs governistas, agora sente a potencial perda de apoio de gente decente e apela a uma bandeira ideológica supostamente comum que suplante os princípios morais alheios.

Como oportunistas, jamais concebem, nem admitem, que o abandono desses princípios é a primeira e maior de todas as derrotas."

Não foi por falta de aviso, portanto, que as outras chegaram.

Bolsonaro cumpriu seu papel de maior cabo eleitoral que Lula já teve. Tarcísio Freitas venceu em São Paulo, Romeu Zema em Minas Gerais e Eduardo Leite no Rio Grande do Sul, mas, como previsto, o pato foi abatido nas urnas.

A direita genuína e o "centro democrático" deveriam buscar alternativas melhores.