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Fernanda Magnotta

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Construir confiança será desafio central de Biden na América Latina

Joe Biden discursa em Scranton - Angela Weiss / AFP
Joe Biden discursa em Scranton Imagem: Angela Weiss / AFP

Colunista do UOL

11/03/2021 04h00

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Há alguns anos, o professor Peter Hakim, presidente emérito de um dos principais "think tanks" de Washington D.C., o Inter-American Dialogue, afirmou que as relações entre os Estados Unidos e a América Latina no século XXI envolviam "políticas esporádicas, sem alvo claro e geralmente vinculadas a situações urgentes ou problemáticas".

Outro importante analista das relações hemisféricas, Abraham Lowenthal, ao acompanhar o comportamento da Casa Branca nas últimas décadas, reforçou a ideia de que as menções à região costumam ser diretamente proporcionais à percepção dos riscos de segurança que os norte-americanos identificam para si.

A essas visões poderíamos acrescentar um componente extra: construir confiança mútua entre as partes tem sido um problema constante e um gargalo significativo no desenvolvimento dos laços regionais.

Durante a administração Trump, com o endurecimento nas agendas de segurança, imigração e o aumento do protecionismo, houve pouco espaço para pautas positivas. Acompanhamos a militarização na fronteira dos Estados Unidos com o México, a revisão do NAFTA, os cortes de recursos em ajuda externa a países como Honduras e Colômbia e o tensionamento com Cuba e Venezuela.

Joe Biden, nos primeiros meses a frente do governo, dá sinais de que também terá dificuldade de ressignificar substancialmente as relações hemisféricas. Isso porque tem como agendas prioritárias temas particularmente sensíveis aos países da região. São pautas ligadas principalmente à promoção dos direitos humanos e do meio-ambiente.

No que tange à Venezuela, um dos tópicos mais delicados da região, oficiais norte-americanos seguem propagando, na gestão Biden, a ideia de que o principal objetivo dos Estados Unidos é apoiar uma transição democrática no país. Pouco antes de tomar posse como Secretário de Estado, Antony Blinken descreveu Nicolás Maduro como um "ditador brutal". Depois, conversou com Juan Guaidó, que reconhece como presidente interino da Venezuela, e anunciou planos de elevar a pressão multilateral contra o regime de Maduro. Na mesma direção, Jon Piechowski, Subsecretário de Estado Adjunto para Assuntos do Hemisfério Ocidental, ratificou, logo no primeiro mês da gestão Biden, que a política de sanções continuaria em vigor e "seria aplicável a funcionários que comprometem a democracia e os direitos humanos na Venezuela".

No último dia 08 de março, Alejandro Mayorkas, Secretário de Segurança Interna dos Estados Unidos, ofereceu aos venezuelanos o "Temporary Protected Status" até setembro de 2022. Essa medida permite que esses cidadãos atualmente residentes nos Estados Unidos permaneçam no país, se elegíveis. Nas palavras do documento oficial, "esta designação se deve às condições extraordinárias e temporárias na Venezuela que impedem os cidadãos de retornar com segurança, incluindo uma crise humanitária complexa, marcada por fome e desnutrição generalizadas, influência crescente e presença de grupos armados não estatais, repressão e uma infraestrutura em ruínas".

No que diz respeito à Cuba, por sua vez, a narrativa criada por Trump, de que há conexões entre esse país e a Venezuela, ganhou força sobretudo no Congresso norte-americano. Especialistas alertam que há, hoje, mais pressões para adicionar a Venezuela à lista de países que apoiam o terrorismo, do que entusiastas em remover Cuba dessa mesma lista.

Ainda na América Central, também cabe lembrar que recentemente Brad Freden, nomeado Representante Permanente dos Estados Unidos na OEA, dirigiu-se de maneira dura ao governo da Nicarágua. Disse que "o regime de Ortega está empreendendo uma campanha de intimidação destinada a silenciar a oposição" e que os Estados Unidos "continuavam firmes com o povo da Nicarágua em sua busca pela restauração da democracia". Julie J. Chung, Secretária assistente em Exercício do Bureau de Assuntos do Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado, também se manifestou sobre o tema na mesma direção: afirmou que o governo Ortega "não pode encobrir suas violações sistemáticas dos direitos humanos".

Do ponto de vista ambiental, a abordagem é igualmente delicada. O Secretário Especial para o Clima John Kerry tem sido um dos mais ativos no trato com a região. Reuniu-se com vários líderes, entre eles Ivan Duque e Alberto Fernandéz. Referiu-se à Colômbia como "líder em ação climática" e à Argentina como um país que "tem planos ambiciosos para capitalizar seu vasto potencial de energia renovável". Apesar do entusiasmo, Kerry tem sido visto por muitos como o mensageiro de uma agenda difícil de acomodar, principalmente no contexto da crise econômica derivada da pandemia de coronavírus.

Joe Biden, por sua vez, ao descrever a sua primeira reunião com o presidente Andrés Manuel López Obrador, destacou a importância de discutir, com o México, "da imigração à mudança climática". Considerado um "saudoso de Trump", Obrador foi um dos últimos líderes do mundo a reconhecer a vitória de Biden nas eleições de 2020. Em seu governo, nunca priorizou a pauta ambiental. Enquanto a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Naturais do México teve trocas constantes de lideranças e baixo papel na definição das pautas do Executivo, Obrador segue apoiando a PEMEX - empresa estatal de petróleo -, favorecendo o uso de combustíveis fósseis e a construção em áreas protegidas do país.

Com o Brasil, essa matéria mereceria um capítulo a parte. Ainda durante o primeiro debate presidencial nos Estados Unidos, Biden sugeriu a criação de um fundo internacional da ordem de US$ 20 bilhões para preservar a Amazônia. Na ocasião, disse que o governo brasileiro enfrentaria "consequências econômicas" se não reduzisse o desmatamento. Mais recentemente, Jake Sullivan, Assessor de Política Externa de Biden, disse que o governo norte-americano buscaria trabalhar de forma colaborativa com o Brasil, mas que "não hesitaria em desafiar Bolsonaro em questões relacionadas à degradação ambiental".

Biden foi o principal emissário para a região durante a gestão Obama. Conhece bem essa realidade e suas particularidades. Ao mesmo tempo, tem barganhas próprias e cobranças para administrar dentro dos Estados Unidos. Especula-se, por exemplo, que a associação do presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento Mauricio Claver-Carone ao trumpismo faça com que as demandas vindas dele sejam mal vistas por lideranças do partido democrata. Isso poderia criar barreiras na aprovação do aumento de capital de US$ 80 bilhões que o BID precisa para ajudar os países atingidos pela covid-19 na América Latina. Esse é apenas um exemplo entre tantos outros que se poderia oferecer.

Construir confiança exige dedicação a um processo. Requer compartilhamento de informações, além de interação constante e comunicação azeitada. Exige alimentar redes e convidar diferentes atores sociais para o diálogo. Demanda instituir regras e práticas cooperativas minimamente estruturadas em torno de princípios compartilhados.

Da perspectiva norte-americana, portanto, há sinais de que o "olhar para dentro" e também eventuais prioridades conferidas à outras regiões do globo possam reduzir a agenda a mais do mesmo: políticas esporádicas e marcadas pela difusão controversa de uma agenda de valores.

Do lado da América Latina, o cenário tampouco é animador. As iniciativas de integração e coordenação regional sucumbem. A fragilidade dos projetos nacionais dificulta pensar políticas de longo prazo: esbarram na falta de estabilidade institucional, de comprometimento das elites e de consensos internos significativos.

Com isso, as perspectivas não parecem muito auspiciosas.