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Fernanda Magnotta

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

G7 e encontro Biden-Putin reforçam tese do "retorno da geopolítica"

Os presidentes dos Estados Unidos, Joe Biden (à esq.), e da Rússia, Vladimir Putin, durante encontro bilateral em Genebra, na Suíça - Denis Balibouse/EFE
Os presidentes dos Estados Unidos, Joe Biden (à esq.), e da Rússia, Vladimir Putin, durante encontro bilateral em Genebra, na Suíça Imagem: Denis Balibouse/EFE

Colunista do UOL

17/06/2021 04h00

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Em 2014, durante o auge da crise entre Rússia e Ucrânia, o professor norte-americano Walter Russell Mead publicou um artigo na revista Foreign Affairs defendendo a ideia de que viveríamos, neste século, o que chamou de "retorno da geopolítica".

O argumento de Mead tinha como ponto de partida a noção de que, muito embora a contemporaneidade possa ter trazido a sensação de que certos dilemas típicos das Relações Internacionais teriam se tornado antiquados, seria um equívoco ignorar o peso que a "política do poder" ainda desempenha nessa seara.

Segundo Mead, a reafirmação da ordem liberal pós Guerra Fria trouxe à tona um conjunto de novos temas dominantes para a agenda, deslocando os tradicionais debates de política externa para questões como desenvolvimento, comércio, promoção da democracia, defesa dos direitos humanos e mudança climática, por exemplo. Esse movimento teve conexão direta com a consolidação da hegemonia norte-americana nos anos 1990, e o conjunto de valores e crenças propagados pelos Estados Unidos e institucionalizados, a seguir, por meio de regimes e organizações internacionais.

Como consequência, passou a não ser do interesse das principais potências ocidentais concentrar-se em discussões da política internacional que envolvessem apenas questões militares, disputas fronteiriças ou esferas de influência. Esses temas passaram a ser, inclusive, convenientemente utilizados como forma de denunciar transgressões de países vistos como "ameaças" à estrutura de governança existente: da Rússia sobre a Crimeia, de China no além-mar, ou do Irã em relação à Síria e ao Hezbollah no Oriente Médio.

Alguns anos depois, em 2021, Mead não poderia ser mais atual: estamos tendo novos indícios de que serão justamente as rivalidades geopolíticas que desenharão os próximos anos da política internacional. Nesse novo contexto, o mais curioso é que esses sinais vêm precisamente da forma como os países lidam com os chamados desafios transnacionais: o terrorismo, a urgência climática ou mesmo a saúde global em face de uma pandemia.

Embora os "novos temas" sejam irreversíveis e estruturalmente complexos, eles parecem não ter trazido consigo novas formas de articulação. Ao contrário, fizeram reviver a urgência das antigas alianças e das conhecidas ações de contrabalanço de poder. Foi exatamente o que assistimos durante o recente encontro do G7, no Reino Unido, e, posteriormente, o que se pôde verificar no encontro de Cúpula entre Biden e Putin, na Suíça.

No primeiro caso, mais do que observar o que os líderes presentes pactuaram entre si, está a importância em entender a centralidade de países que mesmo sem participar do encontro, estiveram presentes o tempo todo: Rússia e China. No segundo caso, mais do que destrinchar aquilo que foi dito entre Biden e Putin, interessa jogar luz sobre o não dito: um conjunto de temas espinhosos que, ao serem tocados, inviabilizariam um encontro diplomático dessa natureza.

Toda ordem internacional reflete uma estrutura de poder. Ao ser mutável, a distribuição de capacidades afeta também os interesses e as preferências dos países, oferecendo oportunidades e/ou incentivos para que surjam atores revisionistas. Durante anos, os Estados Unidos e a Europa se ocuparam em neutralizar potências desestabilizadoras, seja por meio de políticas de contenção, seja por meio de ações de acomodação. Nos últimos anos, porém, players como Rússia e China, que nunca partilharam efetivamente do arranjo pós Guerra Fria, passaram a adotar condutas mais claramente contestadoras e a discutir abertamente os ditos "benefícios" da ordem existente.

Mead já falava, em 2014, que "a Rússia quer reunir o máximo possível da União Soviética" e que "a China não tem intenção de se contentar com um papel secundário nos assuntos globais, nem aceitará o atual grau de influência dos Estados Unidos na Ásia e o status quo territorial por lá". Tratam-se de interesses cujos movimentos serão difíceis de conciliar com as prioridades ocidentais.

Em 2021, portanto, são ainda mais explícitos os dois cardápios que se antagonizam diante dos nossos olhos: de um lado, Estados Unidos e Europa buscam forjar uma agenda pós-moderna pautada no livre mercado, na mudança climática e na segurança cibernética; de outro lado, potências como Rússia e China reforçam a premência de questões como não intervenção, integridade territorial e a consolidação de arranjos de poder regional. A disputa de menus está clara e promete ser tensa; resta saber quem prevalecerá e se, para nós, a refeição será indigesta.