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Em discurso sobre Afeganistão, Biden transfere a culpa para a vítima
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Não é novidade que os Estados Unidos tenham adotado, ao longo de sua história recente, políticas contraditórias no campo internacional. Após o fim da Guerra Fria, a inserção externa norte-americana dialoga com uma concepção de sistema internacional que varia entre a lógica da "superpotência solitária" e do "multilateralismo com liderança".
Como bem notou Bruce W. Jentleson, em um de seus livros, os Estados Unidos dividem a hierarquização do interesse nacional entre as dinâmicas de poder e paz versus o discurso da prosperidade e dos princípios, e adotam estratégias que vão do unilateralismo à formação de coalizões - um comportamento que tem provocado olhares desconfiados sobre o país e levado a questionamentos recorrentes sobre as limitações do poderio norte-americano.
Desde os atentados de 11 de setembro de 2001 paira a questão sobre até que ponto seria vantajoso aos norte-americanos agirem com base na ação unilateral, na mesma medida em que o fim de sua invencibilidade é associado à postura arrogante e paroquialista. Estaríamos diante daquilo que o professor Joseph Nye denominou "o paradoxo do poder americano".
A crise mais recente no Afeganistão é mais um sintoma desse processo: escancara não apenas o problema do poderio dos Estados Unidos e seu declínio relativo propriamente dito, mas também as incertezas de um mundo com lideranças frágeis. Ao mesmo tempo em que revela o potencial destrutivo de intervenções estrangeiras dotadas de vocação missionária, expõe a expectativa de que as potências sejam as fiadoras da manutenção da segurança e da estabilidade no sistema.
Ao defender a decisão dos Estados Unidos de se retirarem do Afeganistão, mesmo diante do colapso que temos testemunhado desde a chegada do Talibã à Cabul, o presidente Joe Biden tentou ressignificar, em rede nacional, uma lógica que os próprios norte-americanos defenderam anos atrás. Biden tentou afastar dos Estados Unidos a responsabilidade de "construir uma nação" ou tutelar, de forma permanente, um país.
Embora tenha reconhecido falhas da equipe de segurança, sobretudo em projetar prazos para o retorno do Talibã ao poder, o discurso de Biden foi frágil e incômodo. A fala de Biden foi orientada por uma lógica de transferência de responsabilidades. No auge da crise, o governo norte-americano optou por culpar a vítima: alegou que os próprios afegão abandonaram o país, na medida em que as lideranças do governo se renderam e fugiram. Afirmou que os militares afegãos, mesmo treinados pelas forças ocidentais, não estavam lutando. Defendeu a ideia de que o Afeganistão é quem deveria apresentar resistência ao Talibã, e não os militares dos Estados Unidos. Disse, inclusive, que a estratégia de evacuação antecipada foi desencorajada pelo governo afegão.
Com olhos no público interno, Biden tentou fazer colar a ideia de que os Estados Unidos estão comprometidos apenas com seus próprios interesses e que não querem se contaminar com as mazelas de terceiros. O problema é que, com isso, revelou mais vulnerabilidades do que forças. Expôs os limites das capacidades norte-americanas, exibiu as chagas da narrativa que pautou as escolhas norte-americanas durante a "Guerra ao Terror", e reforçou a noção de que os Estados Unidos saem definitivamente derrotados da missão que um dia se propuseram a encampar.
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