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Cúpula da Democracia não foi sobre defender valores, mas posições de poder
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Acompanhamos, nos últimos dias, a realização da Cúpula da Democracia, evento promovido por iniciativa de Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, e que reuniu líderes de mais de 100 países em uma conferência virtual. O objetivo, segundo o governo norte-americano, é contrapor a ascensão do autoritarismo no mundo e, por meio da formação de uma coalizão global, proteger as instituições democráticas.
A defesa de um internacionalismo liberal não é novidade na administração Biden. Pauta a narrativa do presidente desde a campanha, na tentativa de reposicionar os Estados Unidos como os "defensores do mundo livre".
Embora essa seja uma agenda que em nada surpreende os americanistas de plantão, ela chama a atenção por dois motivos: primeiro, porque se articula em um momento particularmente sensível das disputas de poder no mundo, e, segundo, porque pode representar um "tiro pela culatra" quando o assunto é defender a democracia.
Além de não terem sido convidadas a participar da Cúpula, Rússia e China têm protagonizado, nos últimos dias, crises centrais da política envolvendo os Estados Unidos. Com a Rússia, ocorre a escalada de tensões na fronteira com a Ucrânia. A possibilidade de um novo ataque à Crimeia alarma a comunidade internacional. O governo Putin pressiona para que a entrada da Ucrânia na OTAN seja vetada pelo bloco ocidental. Com a China, a tensão se aprofundou tanto em função do convite para que Taiwan fizesse parte da Cúpula da Democracia, quanto pelo anúncio do boicote diplomático aos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Inverno em Pequim, que ocorrerão em 2022. O boicote está pautado, segundo os norte-americanos, pelo tratamento dado à minorias como o grupo étnico muçulmano de Uigures, na província de Xinjiang.
Biden utilizou a Cúpula da Democracia para contrapor formalmente Rússia e China, países que incomodam os Estados Unidos e o exercício de sua liderança global. A Cúpula revelou, nesse sentido, tanto um olhar para o passado e para as sombras de uma outra era, quanto uma apreensão com o futuro e os riscos de uma transição hegemônica.
Ela foi, portanto, um palco para defender posições de poder, antes de tudo. Revelou, em meio aos discursos carregados de idealismo, a força de decisões absolutamente pragmáticas, como a recusa de participação do Paquistão, em claro aceno à China, e a baixa disposição de países aliados aos Estados Unidos, como a Alemanha, em se contrapor completamente ao Oriente. Além disso, do ponto de vista da promoção de certos valores, criou para Biden algumas armadilhas delicadas.
Em primeiro lugar, empurrou, apesar de tantas assimetrias e diferenças, Rússia e China para um mesmo lado, reforçando, com isso, um bloco vocal que tem severas ressalvas quanto ao comportamento norte-americano. Em resposta ao evento, as embaixadas dos dois países emitiram uma rara declaração conjunta classificando a Cúpula como um "evidente produto da mentalidade de Guerra Fria".
Em segundo lugar, a iniciativa de Biden, e suas escolhas para a composição do evento permitirá, em um mundo já fragilizado, que se acentuem as disputas em torno do que são, realmente, regimes democráticos. O governo chinês, por exemplo, emitiu, nos últimos dias, um documento oficial cujo título é "China: democracia que funciona". Biden criou uma oportunidade para que Pequim tente relativizar o conceito de democracia e propagar uma visão seletiva do que ela é. A depender do uso político que se faça disso, pode representar um risco preocupante.
Além disso, abundam pesquisas e estudos problematizando a presença, na Cúpula, de lideranças de países que, tecnicamente, apresentam significativos déficits democráticos. É o caso de Modi, da Índia, Duterte, das Filipinas, Morawiecki, da Polônia, e Bolsonaro, do Brasil. Para esses líderes, o convite para o evento representa um alívio das pressões internacionais e será utilizado, também para consumo doméstico, como um "selo de reconhecimento" que vêm da principal potência do mundo na tentativa de minimizar acusações sobre abusos de poder e atos autoritários. É uma emboscada e tanto para quem pretende defender a democracia e o que ela significa.
Por fim, a Cúpula da Democracia colocou sob os holofotes a discussão sobre a autoridade moral dos Estados Unidos quanto o assunto é promover os direitos humanos no mundo. Será relembrada oportunamente sempre que ocorrerem contradições nesse campo. Será utilizada como forma de expor fragilidades e descredibilizar o governo norte-americano. Basta observar a publicação de Yury Tavrovsky, analista russo, que, escrevendo para o Global Times, um jornal estatal chinês, disse que "a iniciativa de Biden se assemelha a uma amante de bordel ensinando moral a estudantes". Esse será o tom.
A ver.
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