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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

No conflito envolvendo EUA e Rússia, a Ucrânia é apenas um detalhe

Colunista do UOL

11/02/2022 04h00

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Temos acompanhado atentamente, nas últimas semanas, a escalada da tensão entre Rússia, Ucrânia e as potências ocidentais. Não à toa, boa parte das nossas colunas recentes versaram sobre diferentes dimensões dessa crise, que monopoliza a atenção dos analistas internacionais.

Apesar das assimetrias entre Rússia e Ucrânia, que evidentemente não podemos ignorar, estamos falando de dois países grandes e relevantes para a estabilidade da eurásia. A Rússia, superpotência até outro dia, dispensa apresentações. Trata-se do maior país do mundo em extensão territorial. É o segundo maior produtor de petróleo do planeta. Tem o segundo maior arsenal nuclear e é membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. A Ucrânia é o segundo maior país da Europa e abriga o terceiro maior exército do continente. Faz fronteira com a Rússia e funciona como rota energética que liga importantes gasodutos desse país à Europa Ocidental.

É fato que os laços entre Rússia e Ucrânia repousam sobre raízes históricas profundas, envolvendo, muito antes da consolidação da União Soviética, percepções de uma identidade compartilhada que gira em torno do conceito de "aliança eslava". É fato também que desde a desintegração soviética, nos anos 1990, a indisposição entre os dois países é igualmente crescente.

A Ucrânia abarca uma região etnicamente diversa e de movimentos nacionalistas efervescentes, que se exacerbam com a formação de coalizões pró Europa Ocidental e pró Rússia ao longo das últimas décadas. De Viktor Yushchenko a Víktor Yanukóvytch temos assistido a um constante vai-e-vem na agenda internacional da Ucrânia. O primeiro, representa a ala simpática à liderança dos Estados Unidos e que desfruta de apoio da OTAN. O segundo, simboliza o grupo que defende a aproximação com a Rússia, o afastamento de alianças militares ocidentais e de qualquer movimento que sinalize uma eventual adesão à União Europeia.

Foi precisamente por conta das incertezas e da falta de garantias em manter um país aliado que o governo Putin optou, em 2014, por invadir e anexar regiões consideradas pró-Rússia na Ucrânia, como foi o caso da Crimeia, de Luhansk e de Donetsk. Esse movimento gerou vocal reação da comunidade internacional. O conflito teve mortos e muita polêmica em torno de uma verdadeira guerra de narrativas que se estabeleceu naquele momento. Para consolidar a paz na região e tentar promover um cessar fogo imediato foram negociados, em 2015, os chamados "Acordos de Minsk", que giravam em torno de 13 compromissos a serem assumidos entre as partes, mediados pelos então líderes de França e Alemanha, François Hollande e Angela Merkel, respectivamente. Tudo isso, no entanto, não pôs fim às diferenças entre os países nem serviu para dissipar a polarização dentro da Ucrânia.

Na contramão das iniciativas de cooperação, os últimos anos foram marcados por desconfiança de todos os lados. A OTAN se moveu no sentido de preparar-se para conter eventuais avanços russos no leste europeu. Os Estados Unidos despejaram volumosos recursos em Kiev, ao mesmo tempo em que realizam exercícios militares na região com o apoio europeu. A Ucrânia investiu em uma nova guinada pró-Ocidente. A Rússia realizou ataques cibernéticos contra o vizinho e agora mantém mais de 100 mil soldados posicionados na fronteira.

Embora a Ucrânia esteja no centro do debate, o olhar atento ao xadrez geopolítico global revela que outras coisas estão por trás dessa disputa. Ela tem a ver muito menos com o que almeja a Ucrânia per se e muito mais conexão com a disputa de esfera de influência entre Estados Unidos e Rússia e a defesa da reputação de suas lideranças, Joe Biden e Vladmir Putin.

Do ponto de vista intelectual, estrategistas norte-americanos há muito tempo defendem a ideia de que a aproximação com a Ucrânia é fundamental para conter o aumento do poder russo. Do ponto de vista prático, não à toa, a OTAN incorporou massivamente países que haviam pertencido ao bloco soviético. Para os Estados Unidos, têm a ver com controle, estabilidade e preservação de sua própria condição de superpotência em um mundo assolado pela constante ameaça do declínio hegemônico. Interessa manter a proximidade com os aliados, reforçar a noção de um "bloco unido", e conter movimentos estratégicos envolvendo particularmente Rússia e China, bem como o casamento entre elas.

O Kremlin, por outro lado, busca garantias de que será possível consolidar seus interesses materiais e ideacionais de expansão e resgate do protagonismo russo na região e no mundo. Usa as diferenças na Ucrânia, portanto, para expor os gargalos do poderio norte-americano, testar os limites de Biden e amplificar o barulho sobre qualquer eventual erro. Procura, ao mesmo tempo, explorar as dissonâncias entre os Estados Unidos e seus próprios parceiros - vide a relutância europeia em acompanhar os norte-americanos na elevação de tom com os russos no atual momento.

Nos dois casos, tanto de Estados Unidos quanto de Rússia, estamos diante de lideranças que precisam reafirmar a que vieram. Que veem na Ucrânia um palco para propagar suas verdades com vistas ao consumo doméstico. Biden e Putin buscam, na Ucrânia, o fortalecimento de suas posições que, por razões distintas, carecem de permanente reforço.

Há muita coisa em jogo, não apenas aspectos óbvios relacionados à segurança internacional em termos tradicionais. Ao falar sobre essa crise, estamos falando sobre ameaça nuclear e violência, claro, sobre a vulnerabilização de direitos humanos e migração, mas também sobre riscos cibernéticos, sobre o preço do petróleo, o uso político do gasoduto Nord Stream 2, e sobre os desafios que podem se impor ao sistema global de pagamento SWIFT, por exemplo. Estamos falando sobre o futuro da política internacional.