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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Deslumbre e ressentimento marcam a recente turnê internacional de Bolsonaro

Colunista do UOL

21/09/2022 04h00

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Se, do ponto de vista histórico, convencionou-se analisar a política internacional principalmente pela ótica dos interesses materiais dos países, cada vez mais, nesse século, temos sido confrontados com a necessidade de considerar o papel dos afetos e das subjetividades na formulação da política externa. 'Necessidade de pertencimento' e 'medo' são duas das dimensões mais importantes dos nossos tempos - não à toa, têm sido sentimentos cada vez mais mobilizados na construção dos discursos e das ações de diversos líderes mundo afora. Nos últimos dias, no caso do Brasil, pudemos ter mais uma amostra significativa de como isso funciona.

Durante a passagem de Jair Bolsonaro por Londres, a fim de participar do velório de Elizabeth II, testemunhamos, escancarada, a dimensão de 'necessidade de pertencimento' como força motriz da comitiva presidencial do Brasil. Ela se manifestou no evidente deslumbramento do grupo com o evento. Ao comparecer ao funeral da rainha, Bolsonaro e seus convidados pareciam estar extasiados com a ocasião como quem não consegue acreditar que vai a uma celebração da qual jamais imaginou ser digno de participar. Além do clima de turismo eleitoral que se criou por onde o presidente passou, nas redes sociais também houve inundação de vlogs, selfies e fotos dignas de entrar para um álbum de família.

A cerimônia foi um "negócio de doido", disse Silas Malafaia, cuja participação na viagem até o momento permanece sem explicação, já que ele não possui cargo no governo. No Instagram, a primeira-dama Michelle Bolsonaro aparecia sorrindo ao lado de seu maquiador, que orgulhosamente referia-se a ela como alguém que "honra a produção nacional", enquanto aproveitava para compartilhar os contatos do ateliê responsável por produzir o vestido da ocasião (em 24hs e à distância, ressaltou), além do serviço de chapelaria e a loja de sapatos utilizadas por ela. Registros de uma produção comumente compartilhados por blogueiras de moda em semanas de alta costura, mas pouco condizentes com o papel de uma primeira-dama no velório de uma autoridade de tal envergadura.

Do ponto de vista político, nada de substantivo; ao contrário. Além de não ter estabelecido nenhum diálogo produtivo com lideranças britânicas durante a passagem por Londres, o presidente ainda colecionou gafes e angariou críticas: fez comparações descabidas sobre os preços dos combustíveis nos dois países, ao visitar um posto de gasolina da cidade; atacou, mais uma vez, o TSE, levantando dúvidas sobre o sistema de votação do Brasil; se irritou ao ser questionado sobre o uso eleitoreiro da viagem; energizou apoiadores que, mais tarde, intimidaram profissionais da imprensa; além de ter protagonizado constrangedoras cenas gargalhando enquanto prestava condolências ao recém-proclamado Rei Charles 3º, que acabara de perder a sua mãe. A imprensa internacional repercutiu cada detalhe. Bolsonaro "quebrou o luto", disse o conservador The Times. Apoiadores desrespeitaram o momento pelo qual passava o Reino Unido, desabafou um cidadão britânico que viralizou nas redes.

Em Nova York, por sua vez, a dimensão do 'medo' foi quem deu as caras com mais nitidez. Usando a tribuna da ONU como palanque, o presidente descreveu um Brasil fictício na tentativa de defender o seu legado. Falou em uma economia pujante (destacando apenas os números convenientes), no combate diligente da pandemia, afirmou que, sob seu governo, a corrupção foi debelada e defendeu a agenda ambiental do país, bem como sua política de Ciência e apoio à inovação. Para todas essas esferas há numerosos dados, todos amplamente divulgados, que reportam o contrário. Mas o que continua chamando a atenção é que, para além das mentiras ou meias-verdades, o discurso do presidente é, como de costume, dirigido aos que, como ele, defendem uma posição antissistema.

A narrativa repousa sobre a figura de 'um mártir' que é responsável por agir como um "divisor de águas", para usar o termo citado pelo próprio presidente em seu discurso. É como se não houvesse "salvação" para o Brasil sem ser por meio de sua liderança. Mesmo depois de quase 4 anos como presidente, mais de 30 na vida pública e um casamento bem negociado com o 'centrão', Bolsonaro não quer se deixar levar pela percepção de que faz parte do establishment. Condena tudo o que veio antes dele, insinua que é preciso temer quem vê o mundo por outras lentes, demoniza a oposição, sugere que seremos dominados por novos ditadores, além de criticar a grande mídia, colocando sobre ela um alvo permanente.

Coloca-se, com tudo isso, como porta-voz de um 'grupo puro' que precisa de um líder orgânico que o represente. Captura, oportunamente, pelo caminho da mágoa, mentes e corações daqueles que sempre se sentiram às margens, assim como os que temem fantasmas que possam assombrar seu conforto e aparente estabilidade. Mobiliza, em uma sopa de letrinhas sem muita coesão, conservadores sensíveis à agenda de costumes, lideranças econômicas que visam o bem-estar de seus próprios negócios e grupos políticos cuja principal intenção é se perpetuar no poder. Arrasta, pelas redes, pessoas que têm certezas demais, na contramão do que nos ensinaram as grandes mentes da História. Boa parte deles conectados por uma forte e destrutiva onda de ressentimento.

É a política sendo feita "com o fígado" e a "Pátria tornando-se capanga de idiossincrasias pessoais", para usar uma frase famosa de Ulysses Guimarães. O preço disso tudo, em matéria reputacional, virá no longo prazo para o Brasil.