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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Críticas dos EUA sobre navios iranianos no Brasil remetem à crise antiga

O navio de guerra iraniano "Iris Makran" passa pela costa do Rio de Janeiro, próximo à praia de Copacabana - Ricardo Moraes/Reuters
O navio de guerra iraniano "Iris Makran" passa pela costa do Rio de Janeiro, próximo à praia de Copacabana Imagem: Ricardo Moraes/Reuters

Colunista do UOL

05/03/2023 11h30

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Testemunhamos, ao longo da última semana, uma série de movimentações envolvendo Brasil, Estados Unidos, Israel e países europeus a respeito da chegada de duas embarcações iranianas ao porto do Rio de Janeiro. Isso ocorreu depois que a Marinha brasileira autorizou a atracagem, de 26 de fevereiro a 4 de março, do Iris Makran, um porta-helicópteros do governo iraniano, e o Iris Dena, uma fragata capaz de carregar armas.

Segundo documento emitido pela Embaixada do Irã no Brasil, "essa visita é a continuidade da missão da flotilha em realizar um círculo completo ao redor do globo" e permite que os dois países possam "cooperar para alcançar objetivos comuns, incluindo ajudar a garantir rotas de comércio marítimo e combater crimes no mar". Ocorre, ainda, por ocasião da comemoração de 120 anos do estabelecimento das relações diplomáticas bilaterais.

A decisão contrariou principalmente os interesses norte-americanos, que já haviam se manifestado anteriormente sobre o tema. A imprensa reportou que, semanas atrás, Lula teria adiado a decisão sobre os navios a fim de evitar que isso afetasse o encontro com Joe Biden. Membros do governo dos Estados Unidos veem a ação iraniana como forma de provocação. Entre os que se manifestaram publicamente sobre o tema merecem destaque o porta voz do Departamento de Estado e a embaixadora dos Estados Unidos no Brasil.

Outras figuras, como o senador republicano Ted Cruz, chegaram a aventar a possibilidade de levantar sanções contra instituições brasileiras associadas a esse episódio. Além disso, direto de Washington, o ex-presidente Jair Bolsonaro tangenciou o assunto durante a conferência conservadora da CPAC (Conservative Political Action Conference, em inglês). Bolsonaro teria sido orientado a acusar o governo do Brasil de apoio ao terrorismo, já que o Irã consta na lista de países do Departamento de Estado que patrocinam essa prática. Não o fez nesses termos, mas disse que se ele fosse presidente, "não teríamos esse problema agora com os navios iranianos".

As movimentações levaram o governo Lula a defender a posição brasileira, afirmando que trata-se de uma decisão soberana do país e que é condizente tanto com os preceitos do Direito marítimo internacional quanto com as tradições diplomáticas adotadas pelo Brasil. O chefe da Assessoria Especial da presidência da República e ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim enfatizou que as embarcações apenas pararam no Brasil para reabastecimento de combustível e de mantimentos, sem que houvesse a identificação de qualquer finalidade militar.

Embora as críticas ao Brasil estejam associadas à denúncias de violações sistemáticas de direitos humanos no Irã, às incertas intenções nucleares daquele país e ao seu papel desempenhado no apoio à Rússia durante a Guerra na Ucrânia, sabemos que o pano de fundo é bem mais complexo do que isso.

O episódio dos navios remete a uma rusga antiga entre duas equipes que se conhecem bem e que já viveram dias de desconforto mútuo anos atrás. Remonta à era Obama e às gestões anteriores de Lula, e a pessoas que agora se reencontram e precisam voltar a lidar com diferentes visões sobre qual o papel internacional de um país como o Brasil.

Em meados de 2010, o Brasil tentou mediar um controverso acordo nuclear com o Irã. A iniciativa brasileira visava encontrar uma solução diplomática para a crise envolvendo o programa nuclear daquele país, que havia sido objeto de muitas discussões e tensões entre ele e a comunidade internacional. O Brasil, juntamente com a Turquia, intermediou um acordo para que o Irã enviasse parte de seu urânio enriquecido para a Turquia, em troca de combustível nuclear para seu reator de pesquisa. No entanto, o acordo não foi aceito pelos demais países envolvidos nas negociações, incluindo os Estados Unidos, a França e o Reino Unido, e as sanções contra o Irã foram mantidas.

Se, por um lado, a iniciativa brasileira foi considerada uma tentativa corajosa de encontrar uma solução diplomática para uma questão complexa, evidenciando a vocação do Brasil como mediador de grandes conflitos globais, por outro, deixou claro que o universalismo perseguido pela diplomacia brasileira e a busca por protagonismo internacional tendem a incomodar as potências estabelecidas, como é o caso dos Estados Unidos. Enquanto aos norte-americanos interessa consolidar o Brasil como um player (e parceiro) regional, ao governo Lula sempre esteve claro que as ambições vão muito além do hemisfério ocidental.

Todos sabemos que os Estados Unidos são bastante seletivos no trato com países considerados párias internacionais - estão aí Arábia Saudita, Paquistão, entre outros, para nos contar a História. Nesses casos, os norte-americanos ignoram sua própria cartilha de valores e se apegam ao credo ecumênico dos interesses pragmáticos. Com o Brasil de Lula, outra vez, eles tenderão a provar do próprio veneno. Não é apenas com o Irã. Olhos atentos para a política externa brasileira para Rússia e China, para começo de conversa.