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Trato com Nicarágua e Venezuela expõe contradições da esquerda brasileira
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Certa vez ouvi de um importante intelectual norte-americano que os Estados Unidos têm, na condução de sua política externa, dois principais pontos de obsessão permanente: Israel e Cuba. Em ambos os casos, existiria, segundo ele, um apego exagerado, com motivação desarrazoada, para tamanho engajamento - seja, no primeiro caso, para oferecer apoio; seja, no segundo caso, para contrapor.
É claro que há, do ponto de vista histórico e geopolítico, fatores objetivos que explicam esse comportamento. Sabemos, evidentemente, que o conceito de racionalidade é, por si só, objeto de muita discussão nas Ciências Humanas e Sociais. Ainda assim, a problematização em questão não deixa de se fazer válida: afinal, até que ponto os países e/ou seus líderes se comprometem com narrativas baseadas em crenças e visões de mundo das quais tornam-se reféns?
No caso brasileiro, o dilema vem, no governo Lula 3, com duas sombras de muito tempo: Nicarágua e Venezuela. Países com governos com quem o PT, e parte da esquerda brasileira, construiu laços umbilicais e cujos custos, agora, são difíceis de administrar. Apoiar governos como os de Ortega e Maduro significa contrariar a própria cartilha no que tange à defesa da democracia, das instituições livres e dos direitos humanos. Levantar a voz contra eles, no entanto, significa romper laços de confiança, comprometer redes de contato e golpear de morte discursos convenientes.
Para navegar mares revoltos, portanto, a política externa do PT usualmente aposta nas ambiguidades, que costumam vir embaladas em declarações soberanistas, que falam em autodeterminação dos povos e em não-intervenção externa. Por vezes, tais declarações acomodam descontentamentos; por vezes, soam como manifestação de certa dissonância cognitiva.
No caso da Nicarágua, por exemplo, o Brasil recentemente se ofereceu para receber cidadãos expulsos pelo governo Ortega. Apesar disso, a diplomacia brasileira não aderiu a uma declaração conjunta de mais de 50 países que denunciaram os crimes desse regime, permanecendo em silêncio durante uma reunião no Conselho de Direitos Humanos da ONU, conforme reportou Jamil Chade para o UOL.
Vale lembrar que em apuração realizada por peritos internacionais, foi identificada uma ampla lista de violações na Nicarágua, incluindo a instrumentalização dos poderes para reprimir as liberdades fundamentais e perseguir opositores. A crise no país ocorre, pelo menos, desde 2018.
Além disso, Lula, no passado, já foi acusado de tentar minimizar a ditadura na Nicarágua. Também o PT passou por momentos delicados no tocante a essa questão, quando, após publicar nota celebrando a eleição de Ortega, no contexto em que seus principais concorrentes encontravam-se presos ou exilados, o partido foi duramente criticado. A publicação chegou a ser removida do site do PT, com a justificativa de que não havia sido submetida à direção partidária, segundo manifestação de Gleisi Hoffmann à época.
No caso da Venezuela, ao mesmo tempo em que o governo Lula aposta em eleições livres para 2024, e defende que elas sejam competitivas e permitam à oposição concorrer, ainda acompanhamos a grande reticência do governo brasileiro e de seus aliados mais próximos em empreender ressalvas quanto aos abusos do governo Maduro. Nos últimos dias, Celso Amorim esteve na Venezuela e reuniu-se com o presidente venezuelano sob o argumento de que visa maior aproximação do Brasil com todos os países latino-americanos, sem exceção.
O fato é que desde Chavez, o PT mantém fortes ligações com a Venezuela. Durante as últimas eleições, por exemplo, o partido emitiu um comunicado apoiando o pleito venezuelano e saudando a vitória do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). Gleisi Hoffmann e outros quadros chegaram a criticar abertamente a posição do então presidente Jair Bolsonaro e do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, por reconhecerem Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela, e defendeu que Maduro havia sido eleito democraticamente. Na mesma época, Lula comentou a visita do então secretário de Estado norte-americano Mike Pompeo a Roraima dizendo que os Estados Unidos precisavam rever a postura de querer ser o "xerife do mundo".
As principais denúncias contra Maduro são de corrupção, violações aos direitos humanos, repressão à oposição política e à imprensa livre, além de uma crise humanitária e econômica sem precedentes no país.
Resgatando a reflexão do velho americanista a que fizemos referência no início, vale a problematização: seria a defesa de ditadores de esquerda um tipo de obsessão à moda da casa? No caso de Nicarágua e Venezuela, sabemos que o dilema expõe rachas de um partido absolutamente heterogêneo, cujos quadros têm apego a agendas diferentes.
Afinal, o que deve prevalecer: a política pragmática orientada por poder e pela defesa de interesses materiais ou a coerência com os próprios valores progressistas? A resposta não é óbvia. Como consequência, vemos, em parte da esquerda brasileira, a busca incessante por algum tipo de coerência em suas visões de mundo, apesar do que diz a realidade.
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