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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Governo Lula não aceita participar de declaração de 55 países contra Ortega

Colunista do UOL

05/03/2023 04h00

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O governo brasileiro não aderiu a uma declaração conjunta de mais de 50 países que denunciaram os crimes de Daniel Ortega e se manteve em silêncio diante das denúncias na Nicarágua, durante uma reunião no Conselho de Direitos Humanos da ONU na sexta-feira. A decisão do Itamaraty de não pedir sequer a palavra para comentar a crise no governo de Daniel Ortega chamou a atenção tanto de governos da América Latina como de capitais em outras partes do mundo.

O UOL apurou que o Itamaraty está acompanhando a situação de perto e chegou a fazer parte da negociação do texto final. O governo sugeriu uma nova linguagem que mantivesse espaço para um diálogo. Mas a proposta não foi aceita e o país optou por não aderir ao texto, considerado como inadequado.

Na lista da declaração conjunta estavam tradicionais potências ocidentais, como EUA, Austrália, Canadá, Alemanha ou França.

Mas também assinaram o documento governos de esquerda da América Latina como Chile e Colômbia. O líder progressista chileno, Gabriel Boric, chegou a chamar Ortega de "ditador". Peru, Guatemala, Paraguai e Equador também assinaram a declaração conjunta.

Fim do silêncio?

Dentro do Itamaraty, há uma expectativa de que o governo emita sua posição na segunda-feira, quando a ONU examina os resultados da primeira investigação independente realizada pela instituição.

Peritos da ONU concluíram que o regime de Daniel Ortega cometeu crimes contra a humanidade e que "violações generalizadas dos direitos humanos que equivalem a crimes contra a humanidade estão sendo cometidas contra civis pelo governo da Nicarágua por razões políticas".

O grupo apela para que a comunidade internacional imponha sanções às instituições ou indivíduos envolvidos. "Os supostos abusos - que incluem execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias, tortura, privação arbitrária da nacionalidade e do direito de permanecer no próprio país - não são um fenômeno isolado, mas o produto do desmantelamento deliberado das instituições democráticas e da destruição do espaço cívico e democrático", disse o relatório.

"Estas violações e abusos estão sendo perpetrados de forma generalizada e sistemática por razões políticas, constituindo os crimes contra a humanidade de assassinato, prisão, tortura, incluindo violência sexual, deportação e perseguição por motivos políticos", disse o especialista independente Jan Simon. "A população nicaraguense vive com medo das ações que o próprio governo possa tomar contra eles".

"As altas autoridades do governo conseguiram instrumentalizar os Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Eleitoral para desenvolver e implementar uma estrutura legal destinada a reprimir o exercício das liberdades fundamentais e perseguir pessoas contrárias", acrescentou Simon. "O objetivo é eliminar, por diferentes meios, qualquer oposição no país."

O relatório identificou um padrão de execuções extrajudiciais realizadas por agentes da Polícia Nacional e membros de grupos armados pró-governamentais que agiram de forma conjunta e coordenada durante os protestos ocorridos entre 18 de abril e 23 de setembro de 2018. O governo obstruiu qualquer investigação relativa a estas e outras mortes.

Desde dezembro de 2018, pelo menos 3.144 organizações da sociedade civil foram fechadas, e praticamente todas as organizações independentes de mídia e de direitos humanos operam a partir do exterior.

Para os peritos, a situação continua a piorar. Em fevereiro de 2023, as autoridades nicaraguenses privaram 222 indivíduos de vários perfis de sua nacionalidade e os expulsaram do país, acusando-os de serem "traidores à pátria". No mesmo mês, o Tribunal de Apelações de Manágua declarou outras 94 pessoas residentes na Nicarágua e no exterior traidores da pátria e decidiu impor a perda da nacionalidade e ordenar o confisco de seus bens em favor do Estado.

Silêncio incômodo

De acordo com famílias de vítimas e ativistas da Nicarágua, além de governos estrangeiros, o silêncio do Brasil causou um incômodo. "Parece que o discurso de defesa da democracia se limita à situação interna do país", afirmou uma fonte na ONU, indignada com a postura de Lula.

Outra voz que se levanta pedido ação do Brasil é de Bianca Jagger. Em entrevista exclusiva ao UOL, a ativista social e política nascida na Nicarágua fez um apelo para que Lula se pronuncie durante da repressão instaurada no país e defenda a democracia.

Para os ativistas, está na hora de o Brasil se posicionar. "Eu conheci o presidente Lula há muitos anos", relatou Bianca Jagger. "Trabalhei com as causas dos povos indígenas, entre eles o bloco yanomami, guarani e outros", disse. Bianca foi casada com Mick Jagger, dos Rolling Stones. Há vários anos ela milita pela democracia em seu país e agora quer uma atitude mais ativa por parte do governo brasileiro.

"Por isso, quero fazer um chamado ao presidente Lula: que por favor se pronuncie de uma forma clara e contundente em apoio a povo da Nicarágua, aos prisioneiros políticos, como o bispo Rolando José Alvarez", afirmou.

"Não se esqueçam: nós precisamos do Brasil. O país precisa assumir um papel importantíssimo em relação aos nicaraguenses", disse a ativista. "Estou confiante de que ele vai fazer isso e quero ir logo ao Brasil", completou.

Brasil quer esgotar diálogo antes de ampliar pressão

O UOL apurou que o governo brasileiro, porém, ainda quer explorar canais de diálogo com o regime de Daniel Ortega, na Nicarágua, enquanto aumenta a pressão internacional para que medidas sejam impostas contra o governo centro-americano por abusos de direitos humanos e violações.

Entre diferentes governos ocidentais, a orientação é de pressionar para que a crise nicaraguense ganhe um outro status dentro da ONU. Até agora, a decisão era de incluir o debate sobre o país dentro dos itens relacionados à cooperação. A meta era de não criar um constrangimento maior sobre Ortega e, portanto, permitir que ele ouvisse as recomendações dos especialistas internacionais em direitos humanos.

Mas nada disso ocorreu e, para muitos países da região latino-americana e para o Grupo Ocidental, está na hora de retirar a Nicarágua do capítulo de cooperação e colocar o país na agenda internacional de violadores de direitos humanos.

Na diplomacia brasileira, porém, a preferência é para que o país continue sendo tratado no capítulo da agenda que lida com a cooperação entre estados e o sistema da ONU. O governo Lula teme que, se colocado sob uma pressão ainda maior, Ortega amplie a repressão.

Relembre o que Lula, então candidato a presidente, disse sobre Ortega em 2022: