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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Cerimônia de Charles 3º coroa nosso século de contradições

Rei Charles 3º e rainha Camilla acenam para o público após coroação - Getty Images
Rei Charles 3º e rainha Camilla acenam para o público após coroação Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

07/05/2023 10h17

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A cada vez que uma cerimônia tem lugar no Reino Unido, somos bombardeados com coberturas em tempo real e com o detalhamento exaustivo de cada rito. Os eventos que vêm de Londres, como foi o caso da coroação do rei Charles 3º, monopolizam a mídia por dias e se travestem de uma relevância ímpar, sugerindo serem muito mais importantes do que realmente são.

Para boa parte do mundo ocidental, a excessiva atenção que se dá às sagrações britânicas parece ter mais a ver com certa excentricidade e com a mobilização de um imaginário de fantasias do que exatamente com as implicações na vida real.

É importante deixar claro que isso não significa menosprezar o sistema político ou o papel do Reino Unido no mundo. Sabemos que a monarquia é um importante vetor de estabilidade para essa região, que essa instituição repousa sobre tradições sociais basilares para forjar uma noção de unidade nacional, e que alimenta importantes vínculos emocionais e identitários de um povo. Sabemos também do peso, simbólico e material, que os britânicos ainda possuem e dos efeitos disso para as relações internacionais.

Nada disso justifica, no entanto, o sequestro de nossa atenção para algo tão distante da nossa realidade e que tem, na sua razão de ser, tantas contradições com as ideias liberais dessa época.

A narrativa ocidental nos convencionou a pensar que Estados que se organizam de formas diferentes das nossas tendem a ser menos eficientes e, em alguns casos, até menos legítimos. Por vezes fomos convencidos, ao longo dos últimos séculos, de que era preciso que alguns fossem "salvos" por cruzadas missionárias em nome da exportação de certos valores e práticas.

Como explicar, portanto, tanta comoção global com os signos da monarquia britânica enquanto demonizamos outros regimes? Talvez seja pelo fato de que diferente do que houve com players menos poderosos, nesse caso fomos educados a normalizar o que vinha de fora, em vez de temer. Não apenas naturalizamos o meio de vida do "outro" como passamos a admirar, romantizar e, principalmente, relativizar seus problemas estruturais.

Enquanto testemunhávamos a coroação do novo rei da Inglaterra, como se fosse um grande evento global de entretenimento, muitos repetiam: "Se isso funciona para eles e para o seu povo, não temos o que discutir". Será que foi a herança da "pax britannica" nos tornou mais condescendentes com um modelo arcaico, baseado em privilégios hereditários e com déficit democrático? Em que parte da História passamos a ser seletivos com as críticas que empreendemos a respeito de modelos que se criaram sobre o racismo, o colonialismo e que vão na contramão do que defendemos em matéria de representatividade?

Não é proibido admirar o modelo britânico, mas é, no mínimo, muito estranho ver essa ginástica que muitos fazem para justificar sua excepcionalidade. Em matéria de crenças, visões de mundo e, principalmente, política, parece que pau que bate em Chico nem sempre bate em Francisco.