Funcionários da ONU no Brasil são investigados por maus tratos e racismo
O MPT (Ministério Público do Trabalho) abriu inquérito civil para investigar se dois funcionários brasileiros da OIT (Organização Internacional do Trabalho), uma agência da ONU, cometeram atos de assédio moral e racismo.
As possíveis vítimas são profissionais que executavam projetos que atendiam a imigrantes africanos em São Paulo e membros de comunidades quilombolas e indígenas na região Norte do país.
A OIT é uma agência da ONU que tem como objetivo "promover o acesso a trabalhos de qualidade, com segurança, dignidade e equidade".
De acordo com depoimentos dados às duas procuradoras do Trabalho, os funcionários da OIT Paula Fonseca e Diego Calixto exigiam documentos que não estavam previstos em contrato, trocavam nomes de profissionais negros e insinuavam que estes não eram pessoas inteligentes e travavam pagamentos de colaboradores.
Um curso de "letramento racial" chegou a ser ministrado por uma procuradora do Trabalho com o objetivo de "sensibilizar" os dois funcionários, apontam membros do MPT.
As ações dos dois funcionários inviabilizaram os repasses financeiros para as atividades da OIT que são financiadas com dinheiro do próprio MPT, indicam documentos da investigação acessada com exclusividade pelo UOL.
Cinco pessoas que alegam ser vítimas confirmaram os relatos à coluna. Quatro delas falaram sob a condição de anonimato.
Duas procuradoras do trabalho atestaram que recolheram os depoimentos e pediram abertura de investigação ao MPT do Distrito Federal.
O relatório do MPT afirma que "as denúncias de supostos maus tratos, racismo e assédios vindo das comunidades, trabalhadores, colaboradores e implementadores já aconteciam há algum tempo."
A reportagem apurou que pelo menos sete relatos contra a OIT foram enviados ao MPT no Distrito Federal. O inquérito civil está sendo tocado desde novembro. O caso não tramita sob sigilo.
Procurados pela coluna por e-mail e por telefone, Diego Calixto e Paula Fonseca não responderam às perguntas da reportagem.
A assessoria da OIT afirmou que "não foi notificada oficialmente" sobre a investigação do MPT (leia mas abaixo).
Pedido de afastamento
Paula Fonseca e Diego Calixto eram responsáveis pela gestão do dinheiro de um projeto chamado Àwúre, voltado à capacitação profissional de comunidades indígenas e quilombolas.
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Quero receberO projeto é tocado pela OIT com recursos financeiros destinados pelo MPT, de acordo com um convênio firmado pelas duas entidades.
No dia 1º de julho de 2024, uma procuradora do Trabalho enviou um ofício à OIT pedindo que Paula Fonseca e Diego Calixto fossem afastados das atividades do projeto, por causa dos indícios de assédios indicados em relatos de colaboradores.
Ela pediu a "suspensão de todas as ações e atividades do Projeto Àwúre ainda em andamento na OIT em razão do comportamento dos dois servidores Diego Calixto e Paula Fonseca, que com tantas denúncias graves não poderiam permanecer à frente do projeto", lê-se no documento da investigação acessado pela reportagem.
Nada foi feito pela OIT em relação aos dois funcionários, de acordo com o inquérito civil.
Curso para imigrantes não recebeu repasses
Uma atividade na qual a conduta dos funcionários da OIT está sendo investigada consistia na realização de curso de corte e costura para imigrantes africanos na capital paulista.
Uma profissional afirmou ao UOL que ficou sem receber o dinheiro necessário para pagar professores e as bolsas dos alunos por ação direta de Paula Fonseca.
De acordo com seu relato, Paula Fonseca exigia documentação que era sabidamente inexistente e não que estava prevista em contrato. Por exemplo, recibos de pagamentos de bolsistas e professores, porém não seria possível enviá-lo pois ninguém tinha sido pago.
No dia 18 de setembro, quando a profissional enviou um relatório da terceira etapa do curso, Paula Fonseca respondeu exigindo uma nova lista de documentos que não constava na lista inicial fornecida por Diego Calixto.
"Não entendo o que está acontecendo, desde primeiro momento foi exposto por mim a vocês, a questão dos recibos das bolsas dos alunos, que ainda não receberam tal como alguns professores", afirma a profissional no email, a cujo conteúdo a reportagem teve acesso.
Uma representante do MPT enviou email a Paula Fonseca questionando sobre as dificuldades de aprovação e liberação de pagamento. Mas o caso não foi solucionado.
O prazo de pagamento se esgotou e a profissional ficou sem receber cerca de R$ 50 mil. Este é o valor que a OIT deveria repassar a ela para que fossem pagos seu próprio salário, os cachês dos professores do curso e as bolsas dos alunos. Não se sabe qual destinação dada ao dinheiro.
Ela recebeu ameaças de violência física por parte de alguns alunos que não receberam o dinheiro da bolsa.
Troca de nomes
De acordo com a gestora pública Raquel Dias, esses pedidos de documentação que não era possível de conseguir passou a ser comum depois da chegada de Diego Calixto e Paula Fonseca na coordenação dos projetos.
Ela afirma também ter ouvido diversos relatos sobre a dificuldade enfrentada pelos colaboradores do projeto de trabalhar com os dois funcionários da OIT.
Dias afirma que tinha, constantemente, seu nome trocado por Diego pelo de outra pessoa, também uma mulher negra.
"A prática de alterar, de maneira constante, nomes de funcionários negros é um exemplo de racismo estrutural no ambiente de trabalho, gerando desigualdade, desrespeito e impacto negativo na saúde mental", afirmou Raquel.
Curso de letramento racial
Um outro profissional contou à reportagem que um curso de letramento racial foi ministrado em junho de 2023 para representantes de diversas entidades, mas o objetivo real era minimizar as atitudes de Paula Fonseca e Diego Calixto que eram consideradas racistas.
O curso foi ministrado por uma procuradora do trabalho.
O relatório do MPT acessado pelo UOL confirma que o curso era voltado para "sensibilizar" Diego Calixto e Paula Fonseca na questão racial, já que em relação aos profissionais de outros órgãos que participavam do projeto não havia esse tipo de queixa.
Em 2023, uma profissional que trabalhou em um projeto de produção de miçanga no território indígena Kumarumã, na região do Oiapoque (AP), teve que contrair um empréstimo bancário para arcar com os custos e fazer os pagamentos previstos.
De acordo com seu relato, Diego Calixto fazia, como de praxe, exigências abusivas em relação às prestações de contas e criava dificuldades até em questões rotineiras, a exemplo da entrega de kits de miçangas para mulheres indígenas que estavam doentes na ocasião do curso e não puderam participar.
O funcionário da OIT exigia que ela voltasse com quilos de miçangas que seriam descartados tão logo a implementadora retornasse a São Paulo. Indígenas ficaram revoltados e a profissional sofreu ameaças.
"Além disso, exigia que a trabalhadora enviasse tudo em papel timbrado mesmo ciente que ela estava dentro da floresta a quilômetros de distância da cidade mais próxima", lê-se em um trecho do inquérito.
Ela teve que recorrer a um membro do MPT para liberar os kits, já que o artesanato é uma importante fonte de renda para a comunidade indígena, que teve suas plantações de mandiocas devastadas na região.
OIT afirma que desconhece inquérito
A OIT é a única agência da ONU que tem estrutura tripartite formada por sindicatos de trabalhadores e de empresários, além dos governos dos países membros da ONU.
Em resposta enviada por sua assessoria de imprensa, a OIT informou "que não recebeu nenhuma notificação formal do Ministério Público do Trabalho relacionada com a conduta dos seus funcionários".
A agência afirmou que não faria comentários a respeito do assunto.
"Pelo mesmo motivo, não estamos em posição de divulgar informações sobre nossos funcionários."
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