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Jamil Chade

"Imprensa que mente" foi instrumento nazista, senhor presidente

Presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), durante reunia?o com o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno. - Marcos Corrêa/PR
Presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), durante reunia?o com o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno. Imagem: Marcos Corrêa/PR

Colunista do UOL

28/02/2020 08h31

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O peso das palavras de um chefe de estado não é medido apenas por seu significado no dicionário. Quando um presidente usa certos termos, é sua obrigação saber se eles vêm ou não carregados de uma herança.

Nesta semana, ao criticar a "imprensa que mente" em uma live, o líder brasileiro da extrema-direita, Jair Bolsonaro, não fez mais do que usar o mesmo termo repetido à exaustão pelo regime nazista, mesmo antes de tomar o poder na Alemanha nos anos 30. Ele ainda indicou que teria uma reunião com a Fiesp para tentar reduzir publicidade em meios de comunicação contrários ao governo. Nada disso é novo. Nada.

Lügenpresse (imprensa mentirosa) surgiu ainda no começo do século 20, no contexto da Primeira Guerra Mundial. Mas foram os nazistas que se apropriaram do termo como parte de sua arma para silenciar a oposição ou simplesmente a imprensa livre.

Naquele momento, circulava pela Alemanha a suposta informação de que a imprensa local estava toda dominada por judeus. Portanto, quando críticas eram feitas aos nazistas, a explicação era simples: tudo aquilo não passava de uma manobra dos judeus.

Ao chegar no poder, Adolf Hitler manteve e ampliou a campanha de ataques contra a imprensa. E sempre com o uso do mesmo termo: a imprensa que mente. Em alguns casos, a ofensiva era ampliada para também incluir acusações de que editores não apenas eram judeus, como também marxistas.

Nos anos seguintes, jornais foram fechados, jornalistas e editores detidos e os equipamentos de centenas de escritórios confiscados para que nazistas pudessem produzir seus próprios jornais.

A liberdade de imprensa foi, de fato, um dos alvos do movimento de extrema-direita. Se em 1933 os nazistas controlavam menos de 3% dos 4,7 mil jornais alemães, a situação mudou rapidamente.

O governo alemão ainda convenceu empresários simpático ao regime a comprar jornais que, por sua vez, passariam a ser controlados pela propaganda nazista. A imprensa vivia uma séria crise financeira no início da década de 30 e o regime conseguiu adquirir dezenas de meios de comunicação a preços baixos.

Um dos instrumentos foi ainda a eliminação do sistema político multipartidário, abrindo a porta para o o desaparecimento de centenas de jornais produzidos ou financiado por grupos ligados a partidos políticos ou sindicatos. Ao mesmo tempo, uma campanha foi estabelecida para alimentar a sensação de que haveria uma "revolta comunista" à beira de ocorrer.

A partir de 1933, todos aqueles que não eram arianos desapareceram das redações. A Lei de Editores, de 4 de outubro daquele ano, estabeleceu a necessidade de se manter registros de editores e jornalistas "racialmente puros". Judeus ou pessoas casadas com judeus precisavam deixar as redações. No parágrafo 14 daquela mesma lei, o governo exigia que os editores censurassem qualquer notícia "calculada para enfraquecer a força do Reich no exterior ou em casa".

Em todos os momentos em que era questionado, o regime reagia com a mesma frase: "a imprensa que mente" é a inimiga do povo. Aquele mesmo povo que passou a ser impedido de ter acesso à informação.

No caso do Brasil, a ofensiva de mentiras não se limita ao presidente e suas lives. Na ONU, um país que não existe foi promovido nesta semana pelo governo.

A embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, criticou a alta comissária da ONU, Michelle Bachelet, depois de a chilena denunciar o desmonte dos direitos humanos no Brasil.

Entre os seus argumentos apresentados, a diplomata brasileira garantiu que o programa de proteção do governo para ativistas foi ampliado para incluir jornalistas, insinuando que Brasília estava comprometido a defender a imprensa. Ela, porém, não citou as ofensas sexuais do presidente contra a jornalista Patrícia Campos Mello e nem as bananas dadas à imprensa. Mas a embaixadora tem sua recompensa: além de ter recebido um telefonema de Bolsonaro no ano passado para agradecê-la por seu comportamento, ela é aplaudida efusivamente pelo bolsonarismo mais radical e ignorante.

A transparência tampouco fez parte da agenda de Damares Alves, em sua recente passagem pela ONU. O conteúdo da reunião entre ela e Michelle Bachelet jamais foi explicado pela ministra. Dentro da sala, Damares teve de ouvir duras críticas.

Seus posicionamentos geraram profundo desconforto na ONU e entre ativistas de direitos humanos. Sua defesa da liberdade de imprensa e das próprias mulheres também mostrou limites claros.

"Às vezes, o meu presidente brinca", disse a ministra de Direitos Humanos, em entrevista para a Radio França Internacional ao ser questionada sobre o comportamento de Bolsonaro diante da imprensa.

Não há mais espaço para meias palavras. Ataques contra a sociedade civil ou a imprensa passaram a fazer parte de uma estratégia de governo. Difundir o ódio se transformou em uma arma na ausência da capacidade de dialogar ou mesmo de fazer passar seus projetos de lei.

Estamos sob ataque. A liberdade está sob ataque. Aqueles que estão tomando decisões ou embaixadores no exterior que usam suas vozes para iludir a comunidade internacional fazem parte de uma mesma estratégia de poder de um grupo que representa uma ameaça à liberdade. Todos são responsáveis.

A história não nos poupará de críticas se não tomarmos a iniciativa de, diariamente, denunciar a deriva autoritária.