Governo justifica afagos a torturadores como "liberdade de opinião"
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Resumo da notícia
- Relatores da ONU alertam que estado tem obrigações legais e que vê com preocupação a "glorificação" de torturadores
- Cartas entre peritos internacionais e governo brasileiros revelam troca de farpas e acusações
Cartas trocadas entre relatores da ONU e o governo brasileiro revelam o profundo mal-estar entre os responsáveis por direitos humanos na entidade e o Palácio do Planalto. O motivo: a insistência do governo de Jair Bolsonaro de se recusar a admitir a existência de um golpe de estado em 1964 e fazer apologia de torturadores.
Os documentos, enviados entre Genebra e Brasília entre junho e agosto, apontam para denúncias contra o comportamento de Bolsonaro. Mas a resposta do governo é de que o presidente tem o direito a ter sua "opinião" sobre os acontecimentos passados.
Segundo os peritos, as leis internacionais não lhe conferem tal direito ter sua "opinião".
Já em 2019, um dos relatores da ONU, Fabian Salviolli, havia enviado uma carta ao governo protestando contra a decisão de Bolsonaro de recomendar que a data do golpe fosse comemorada. Meses depois veio mais uma cobrança, também sobre o mesmo assunto.
Agora, porém, o caso ganha uma nova dimensão. Isso depois que cinco relatores da ONU decidiram se unir para protestar contra Bolsonaro. Desta vez, Salviolli foi acompanhado por Agnes Callamard, relatora da ONU sobre execuções sumárias e que investigou a morte do jornalista Jamal Khashoggi, Nils Melzer, relator sobre tortura e que acompanhou o caso de Julian Assange, além de outros.
Na carta de 29 de junho e que estava sendo mantida em sigilo, os peritos destacam os comentários de Bolsonaro sobre a "negação da existência de uma ditadura militar no Brasil entre 1964 e 1985" e como ele "avalia positivamente os eventos ocorridos durante este período", além de "banalizar as violações cometidas".
"O presidente reafirmou em várias ocasiões que não houve um golpe de Estado, no país, mas um movimento político legítimo" e seu entendimento de que "era necessário evitar a crescente ameaça de uma tomada de poder comunista sobre o Brasil", apontam os relatores.
Os peritos, porém, afirmam estar preocupados diante das "teorias revisionistas e negacionistas de violações dos direitos humanos no passado".
O grupo na ONU lista os atos de Bolsonaro e de sua equipe na negação da ditadura:
- Em 30 de julho de 2019, Bolsonaro criticou o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, que em 2014 concluiu que a ditadura foi responsável por 434 assassinatos e desaparecimentos e centenas de casos de detenção arbitrária e tortura.
- Em 1º de agosto de 2019, o governo alterou a composição da Comissão Especial sobre Mortes e Desaparecimentos Políticos, substituindo pessoas com reconhecida experiência no campo da justiça transicional por um conselheiro com poucos conhecimentos neste campo, e dois membros das forças armadas com uma história relatada de defesa da ditadura militar, o que por sua vez poderia impedir seu trabalho efetivo e imparcial. As mudanças aconteceram uma semana após a Comissão ter documentado o desaparecimento e morte de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira como uma morte violenta causada pelo Estado.
- Em 8 de agosto de 2019, Bolsonaro chamou Carlos Alberto Brilhante Ustra de "herói nacional". Brilhante Ustra foi o chefe do DOI-CODI de 1970 a 1974. Ele foi o primeiro funcionário público a ser condenado pelos crimes de sequestro e tortura cometidos durante a ditadura do país.
- Em 1º de março de 2020, Bolsonaro afirmou que "a alegação de tortura é um esquema para obter indenizações".
- Em 31 de março, no aniversário do golpe militar, Bolsonaro afirmou novamente que não havia havido um golpe de Estado no Brasil em 1964 e declarou que este era o "Dia da Liberdade". No mesmo dia, o Vice-Presidente do Brasil declarou que em 1964 as Forças Armadas "intervieram na política nacional para enfrentar desordem, subversão e corrupção".
- No dia 4 de maio, Bolsonaro reuniu-se com o Major Curió, tenente-coronel aposentado responsável pela repressão da Guerrilha Araguaia nos anos 70.
- Em 5 de maio, o canal de comunicação institucional da presidência publicou um texto e uma foto do encontro, chamando o Major Curió de herói do Brasil, em contravenção a uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund ordenando ao Brasil que reconhecesse e divulgasse as violações cometidas contra a Guerrilha do Araguaia durante a ditadura militar (1964-1985).
- Em 7 de maio, a Secretaria Especial de Cultura do Brasil declarou em referência ao período da ditadura: "cobrar por coisas que aconteceram nos anos 60, 70 e 80". Em seguida, ela cantou um jingle do regime militar dizendo: "não foi bom quando cantamos isto? Em resposta à pergunta de uma jornalista sobre tortura, ela respondeu: "Sempre houve tortura" [...] "Eu não quero arrastar um cemitério nas costas. Não quero isto para ninguém". Eu sou leve".
Os peritos ainda declaram na carta que "expressam grande preocupação com as observações públicas feitas pelo presidente Bolsonaro e membros de seu Governo criticando o trabalho da Comissão Nacional da Verdade e negando a existência de uma ditadura militar no Brasil de 1964 a 1985, bem como avaliando positivamente os eventos ocorridos durante este período, que incluíram graves violações dos direitos humanos, e banalizando tais violações".
"Expressamos ainda nossa preocupação com a reiterada glorificação de pessoas condenadas por terem participado de crimes contra a humanidade ou que estão sob investigação por tais crimes", disseram.
"Além disso, observamos com preocupação que as observações acima não parecem constituir ações isoladas, mas sim uma narrativa sustentada que mina os esforços existentes para criar uma memória do passado abusivo do Brasil e proporcionar reconhecimento às vítimas e suas famílias", constatam.
Para o grupo na ONU, "a negação de violações do passado e a desinformação deliberada sobre eventos passados que afetaram gravemente uma sociedade, são contrárias ao dever dos Estados de garantir a total divulgação da verdade e a preservação da memória sobre violações do passado, conforme consagrado em inúmeras normas internacionais de direitos humanos".
"Tais observações infligem sofrimento às vítimas e suas famílias, e levam à sua revitimização. Além disso, minam os esforços para evitar a recorrência de violações do passado e podem constituir uma séria ameaça à manutenção de sociedades pacíficas e democráticas", alertam.
Cobrando respostas do governo, os peritos ainda "expressam preocupação com a suposta interferência no trabalho dos mecanismos de justiça transitórios existentes, tais como a Comissão Especial sobre Mortes e Desaparecimentos Políticos, que pode comprometer ainda mais os esforços do Brasil para lidar com as violações dos direitos humanos no passado e impedir sua recorrência".
Os especialistas pediram que o governo forneça informações sobre as medidas tomadas para assegurar que as violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura brasileira "continuem a ser reconhecidas e que tais informações sejam amplamente divulgadas entre a população a fim de assegurar que a memória coletiva sobre estas violações seja preservada, e sua recorrência evitada".
Liberdade de Opinião
Numa resposta no dia 26 de agosto, porém, o governo brasileiro deixou claro que não irá abrir mão de sua posição e que os comentários de Bolsonaro fazem parte de seu direito à liberdade de expressão e de opinião.
O governo também indicou que tal questionamento sobre o comportamento do presidente não seria tolerado.
"O governo brasileiro considera injustificáveis as alegações encaminhadas e até mesmo o fato de os distintos relatores questionarem o chefe de estado do Brasil por suas decisões que estão totalmente dentro do escopo de suas atribuições legais", responde o governo em sua carta.
"Inicialmente, vale a pena lembrar que o Brasil é uma democracia sólida, com instituições em totalmente funcionamento, regida por princípios constitucionais e garantias baseadas nos mais altos padrões do Estado de direito, incluindo o direito à liberdade de pensamento, o direito à liberdade de expressão e o direito à liberdade de opinião", disse Brasília. "Tais direitos, claro, estendem-se aos detentores dos mais altos cargos na República", alertou.
"A opinião de qualquer brasileiro ou estrangeiro residente no Brasil sobre um determinado episódio da história brasileira é livre e deve ser respeitada, incluindo a opinião das autoridades", apontou o governo em resposta à ONU.
"A Constituição brasileira garante a liberdade de expressão de pensamento ou opinião - inclusive positiva - sobre os governos militares no período 1964-1985", insistiu a carta.
O documento relata como "as pessoas que relacionam danos e prejuízos ao período entre 1964 e 1985 têm pleno direito à liberdade de opinião (e à livre expressão de tal opinião)". "Essas pessoas podem recorrer ao Poder Judiciário, se entenderem que qualquer declaração ou opinião de um compatriota pode tê-los ofendido. Este é um mecanismo tipicamente democrático e, portanto, garantido no Brasil", justificam.
A carta indica que o estado brasileiro já reconheceu as violações e "reparou as pessoas que se viam como objeto de tais violações".
No documento, porém, a Comissão da Verdade é uma vez mais alvo de um ataque por não ter analisado "os crimes e agressões perpetrados pela oposição armada ao regime".
Além de defender que as comissões continuam operando, o governo indica que a lei permite que seja o presidente quem escolha os membros de algumas das iniciativas.
O carta ainda alega que o governo "continua com vários projetos na área, como a análise dos restos mortais exumados boné do Cemitério Dom Bosco, especialmente de sua vala clandestina, localizada no bairro de Perús, em São Paulo, com o objetivo de identificar pessoas mortas e desaparecidas", completa.
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