Topo

Jamil Chade

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Escárnio, Copa América no Brasil é símbolo da destruição moral

O presidente Jair Bolsonaro exibe uma camisa da seleção brasileira ao lado de Neymar, do presidente da CBF, Rogério Caboclo, e do general Augusto Heleno, chefe do GSI - Divulgação
O presidente Jair Bolsonaro exibe uma camisa da seleção brasileira ao lado de Neymar, do presidente da CBF, Rogério Caboclo, e do general Augusto Heleno, chefe do GSI Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

31/05/2021 11h38

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Ao terminar o jogo final, caberá ao presidente Jair Bolsonaro deixar a ala VIP e entregar o troféu ao vencedor. De um lado, o capitão da seleção enxugará o suor antes de levantar a taça. Mas corre o risco de, ao receber, notar que ela está manchada. De sangue.

A decisão de transferir a Copa América ao Brasil, um dos epicentros da pior pandemia em cem anos, é um escárnio e revela que autoridades - do futebol e da política - simplesmente não respeitam vidas, e nem mortes.

Símbolo da destruição moral, o evento cai como uma luva para quem perdeu sua legitimidade de governar por ter fracassado em seu papel mais fundamental: garantir a vida de seus cidadãos. Em seu anúncio, a Conmebol "agradece" ao presidente Jair Bolsonaro pelo gesto. Mais parecia um eco cúmplice ao seu comentário "e daí?" diante das mortes.

A jogada, de uma violência atroz contra sobreviventes e famílias daqueles que se foram, é o sinal evidente de autoridades populistas que apostam no futebol como remédio para trazer de volta a "normalidade".

Elas não são as primeiras. A história de regimes questionáveis está repleta de exemplos de como governantes foram buscar em mega eventos e em suas seleções instrumentos para desviar o foco de atenção, manipular massas e tentar ganhar legitimidade. Berlim às vésperas do Holocausto, Mobuto e seu ringue, Videla e sua Copa, e tantas outras.

No caso do Brasil, as prováveis datas ainda vão coincidir com uma das marcas mais dramáticas na história recente do país, com 500 mil mortos acumulados em pouco mais de um ano de crise sanitária. Muitas delas poderiam ter sido evitadas. Mas talvez a esperança dos organizadores é de que o choro daqueles que ficaram seja abafado pelo grito de gol.

Assim como no futebol, num governo existem regras. E uma delas é o impedimento. Nesse caso, não há sequer necessidade de um VAR.

No mesmo dia em que a Copa América é anunciada no Brasil, a OCDE deixa claro que a situação sanitária no país é grave, que a vacinação é lenta, que a pobreza ameaça crescer e que o auxílio emergencial é insuficiente.

Não temos escolas, uma geração inteira sentirá por anos as consequências dessa crise definidora de nossa geração e, em inúmeras cidades, não há leitos de UTI.

Mas, aparentemente, teremos futebol.

Pessoalmente - e pela primeira vez em meus 45 anos de idade - torcerei contra a seleção. Por respeito aos mortos, por respeito aos órfãos, aos viúvos, aos pais que viram seus filhos morrerem, aos milhões de desempregados e aos outros milhões de famintos.

Há pouco mais de cem anos, o evento que deu origem à Copa América deveria ocorrer no Brasil em 1918. Naquele ano, porém, uma outra pandemia levou o país a cancelar o torneio e adiá-lo para o ano seguinte.

Hoje, a decência não foi escalada.

Qualquer grande evento, diante de tal cenário de guerra, seria descabido. Mas trazer jogadores, comissões técnicas, cartolas e jornalistas de todo o continente para um país que se recusa a promover distanciamento social e que conta com um governo negacionista beira a um crime.