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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Sem romper com indústria, UE apresenta plano de vacina e Brasil pode aderir

Manifestante anti-Bolsonaro pede vacina - Getty Images
Manifestante anti-Bolsonaro pede vacina Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

04/06/2021 07h17

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Resumo da notícia

  • Projeto desarma proposta de mais de 60 países emergentes de quebra de patentes de vacinas
  • UE ainda tenta encontrar alternativa para ideias apoiadas por EUA e China
  • Proposta deve ser apresentada dia 8 de junho, na OMC, e Brasil considera aderir ao plano

Na tentativa de desarmar a proposta de países emergentes para suspender patentes de vacinas, a UE apresenta uma nova estratégia para lidar com a escassez de doses no mundo. O plano não prevê a suspensão de patentes durante três anos, como pedem as economias em desenvolvimento e sugere que se privilegie acordos de licenciamento com empresas farmacêuticas. Mas, apenas em última instância e sob condições rígidas, admite usar os instrumentos de propriedade intelectual já vigentes.

O governo brasileiro já recebeu um convite para aderir ao projeto e, segundo o Itamaraty, avalia neste momento patrocinar a ideia. Mas ativistas e países mais pobres temem que a estratégia represente uma defesa dos interesses das empresas farmacêuticas e que não acarrete na mudança profunda que se esperava na produção de vacinas.

Com a elevada concentração de imunizantes em apenas dez países do mundo e com China, EUA e Índia representando 60% de todas as doses administradas, a preocupação da OMS é de que a meta de vacinar 1 bilhão de pessoas contra a covid-19 nos países em desenvolvimento até o final de 2021 não será atingida.

Nos últimos meses e com esse risco já claro, Índia e África do Sul passaram a liderar um bloco de países emergentes que pedem na OMC a suspensão de patentes de vacinas. O objetivo era o de permitir que, durante a pandemia, o monopólio das grandes empresas fosse repensado e que laboratórios de todo o mundo pudessem fabricar versões genéricas dos produtos.

Assim, o abastecimento poderia ser facilitado, principalmente nos países mais pobres.

Mas governos europeus deixaram claro que não apoiariam a ideia, mesmo depois que China, Rússia e EUA também sinalizaram que estavam dispostos a aderir ao projeto dos emergentes.

O governo brasileiro também apontou que não estaria disposto a abrir mão das patentes, indicando inclusive que acreditava que tal proposta seria "agressiva" e que minar as negociações entre Brasília e o setor farmacêutico.

Agora, a UE sugere um novo caminho, que envolve uma estratégia na qual o interesse de empresas farmacêuticas seja considerado. Não há qualquer referência ao projeto de suspender as patentes por três anos, como querem mais de 60 países, para todos os produtos que possam servir para frear a pandemia.

Bruxelas admite que, numa pandemia "a exigência de negociar com o detentor dos direitos de patentes pode ser dispensada". Mas isso implicaria que o dono da patente cedida a uma empresa de um país em desenvolvimento seja devidamente remunerada e a partir dos valores praticados no mercado onde os produtos genéricos seriam distribuídos.

Além disso, os europeus insistem que não há motivos para estabelecer novas regras e que os atuais acordos de patentes já são suficientes.

Antes de qualquer quebra de patente, governos devem negociar acordos de licenciamento voluntário com o setor privado.

Os europeus ainda apontam que a questão de patentes é apenas parte da estratégia e que um maior acesso de doses não ocorrerá pela quebra de direitos de propriedade intelectual. Para a UE, o pacote deve envolver a facilitação do comércio e disciplinas para limitar as restrições à exportação. Na prática, o que os europeus insistem é que a estratégia deve ser focada, acima de tudo, na manutenção da abertura das cadeias de abastecimento.

"Os países produtores de vacinas deveriam exportar uma parte justa de sua produção interna", defende a UE.

Outra vertente da proposta é "encorajar e incentivar fortemente os fabricantes e desenvolvedores de vacinas a expandir a produção e garantir o fornecimento adequado e acessível de vacinas a países de baixa e média renda durante a pandemia".

Isso incluiria acordos de licenciamento, prevendo o compartilhamento de know-how, preços escalonados, fabricação sob contrato e novos investimentos em instalações de fabricação em países em desenvolvimento.

Sempre, porém, em acordo com a indústria.

"Possuir a propriedade intelectual de um produto não é o único fator que determina se uma determinada vacina pode ser produzida, muito menos se ela pode ser fabricada de forma rápida e segura", defende a UE.

"Soluções voluntárias e cooperação público-privada são a forma mais eficaz de garantir o acesso equitativo global aos tratamentos e vacinas da COVID no menor tempo possível", insiste o documento de Bruxelas.


Brasil avalia adesão; ativistas lamentam

A proposta deve ser debatida na OMC no próximo dia 8 e fontes no governo brasileiro indicaram que já receberam o projeto europeu. O Itamaraty avalia aderir à ideia que, segundo negociadores, vai na mesma direção que o governo vinha defendendo nos últimos meses.

Mas ativistas lamentaram o foco escolhido pelos europeus, indicando que a proposta "salva" a indústria farmacêutica de qualquer questionamento mais profundo sobre suas patentes e, em caso de quebra de propriedade intelectual, a remuneração deveria estar assegurada.

Diplomatas de países emergentes também lamentaram a proposta, considerada como insuficiente para dar resposta à pandemia. Mas, diante de um impasse de oito meses, o texto poderá fazer parte de negociações e de uma "saída pragmática" a partir da próxima semana.

Eis o texto completo da nova proposta europeia:


Acesso global às vacinas

A UE está empenhada em garantir o acesso global às vacinas. A UE tem sido uma das principais apoiadoras da COVAX desde o início. E continuará a liderar o desafio de garantir acesso oportuno e equitativo às vacinas em todo o mundo.

A Equipe Europa (a Comissão trabalhando com os Estados-Membros) contribuiu com um total de pouco mais de 40 bilhões de euros para o apoio internacional na luta contra a COVID-19. É também um dos principais colaboradores da COVAX, com mais de 2,7 bilhões de euros, e também está apoiando o colchão humanitário.

Entretanto, o financiamento por si só não é suficiente, como pode ser visto pela forma como a implantação da COVAX tem sido prejudicada por restrições e atrasos no fornecimento global. A questão crítica aqui é como aumentar a produção.


Como a produção de vacinas dentro da UE apóia as necessidades globais

A UE já tomou medidas significativas para aumentar a produção de vacinas dentro da UE. O financiamento fornecido aos produtores de vacinas no âmbito da Estratégia de Vacinas da UE acelerou a aceleração da produção de vacinas. E a Força Tarefa liderada pelo Comissário Breton tem acompanhado e auxiliado as empresas à medida que elas aumentam a produção.

Ao contrário de outras regiões, a UE não exigiu acesso exclusivo a vacinas quando investiu em vacinas. Como resultado, até 26 de maio, as exportações da UE haviam atingido cerca de 227 milhões de doses de vacinas, fornecendo 46 países. Isto se compara a apenas 261 milhões de doses entregues aos Estados Membros.

Desde o início, a capacidade de compartilhar doses além das da UE foi fator determinante para o pensamento. Todos os acordos de compra antecipada assinados sob a Estratégia de Vacinas da UE permitem aos Estados Membros - como proprietários de quaisquer doses compradas - compartilhar doses com outros países através de revenda ou doações. Existe agora também uma meta clara, com o Conselho Europeu de maio de 2021 concordando com o objetivo de pelo menos 100 milhões de doses doadas até o final do ano.

A Comissão também está trabalhando para operacionalizar um mecanismo da UE para este compartilhamento de vacinas, em particular através da COVAX. As doações devem inicialmente beneficiar os trabalhadores da saúde, assim como atender às necessidades humanitárias.

Apoio à produção de vacinas fora da UE

Em relação à produção de vacinas fora da UE, grande parte do debate tem se centrado na questão da propriedade intelectual.

Possuir a propriedade intelectual de um produto não é o único fator que determina se uma determinada vacina pode ser produzida, muito menos se ela pode ser fabricada de forma rápida e segura. Ela precisa de conhecimento especializado, pessoal treinado, investimento e tempo para estabelecer novas linhas de produção de vacinas, mesmo onde o produtor já possua a tecnologia e o know-how. Onde não têm, chegar ao estágio de produção corre o risco de chegar tarde demais para atender à necessidade de vacinas COVID-19. A propriedade intelectual não é, portanto, o principal obstáculo para o rápido aumento da produção de vacinas.

Também sabemos que as vacinas COVID-19 dependem de muitos componentes e têm cadeias de fornecimento muito complexas: é improvável que elas possam ser replicadas rapidamente.

Soluções voluntárias e cooperação público-privada são a forma mais eficaz de garantir o acesso equitativo global aos tratamentos e vacinas da COVID no menor tempo possível. Esta é a essência da "terceira via" solicitada pelo Diretor Geral da OMC.

Muitas dessas parcerias já estão em andamento, inclusive com muitos produtores do mundo em desenvolvimento. E também é crucial garantir que todos os produtores possam obter os insumos necessários para fabricar vacinas o mais rápido possível.

Esta é a maneira mais rápida de aumentar a produção de vacinas. Entretanto, tais acordos voluntários podem nem sempre ser possíveis. É por isso que o licenciamento compulsório é um recuo importante e perfeitamente legítimo.

Próximos passos

Para cumprir esta abordagem, a Comissão apresentará uma proposta à OMC focalizando três vertentes: primeiro, facilitação do comércio e disciplinas para limitar as restrições à exportação; segundo, expansão da produção, inclusive através de promessas por produtores e desenvolvedores de vacinas, e terceiro, esclarecimento e facilitação das flexibilidades do Acordo TRIPS relativas às licenças compulsórias.

A primeira vertente limitaria a aplicação de restrições à exportação e manteria as cadeias de abastecimento abertas. Os países produtores de vacinas deveriam exportar uma parte justa de sua produção interna. A UE tem feito isso durante toda a pandemia e continuará a fazer isso. Além disso, deve ficar claro que nenhuma restrição de qualquer tipo é aplicada aos suprimentos para as instalações da COVAX, e nenhuma medida deve ser tomada que limite o comércio de materiais necessários para a produção da vacina COVID-19 e da terapêutica.

Sob a segunda vertente, os governos devem encorajar e incentivar fortemente os fabricantes e desenvolvedores de vacinas a expandir a produção e garantir o fornecimento adequado e acessível de vacinas a países de baixa e média renda durante a pandemia. Tais ações poderiam incluir acordos de licenciamento, prevendo o compartilhamento de know-how, preços escalonados, fabricação sob contrato e novos investimentos em instalações de fabricação em países em desenvolvimento.

Em apoio a esta abordagem, e conforme anunciado na Cúpula Mundial da Saúde em 21 de maio, uma Iniciativa da Equipe Europa sobre fabricação e acesso a vacinas, medicamentos e tecnologias de saúde apoiará a fabricação local de vacinas e outros produtos de saúde na África, apoiada por 1 bilhão de euros do orçamento da UE, do Banco Europeu de Investimento (BEI) e de instituições financeiras européias de desenvolvimento. Este montante será ainda mais reforçado pelas contribuições dos Estados-Membros.

Finalmente, a terceira vertente estaria relacionada à propriedade intelectual, e implicaria que os membros da OMC concordassem com o seguinte:

a) a pandemia é uma circunstância de emergência nacional e, portanto, a exigência de negociar com o detentor dos direitos pode ser dispensada;

b) Para apoiar os fabricantes prontos a produzir vacinas ou terapêuticas a preços acessíveis, especialmente para países de baixa e média renda, com base em uma licença compulsória, a remuneração do detentor da patente deve refletir esse preço acessível;

c) a licença compulsória poderia ser utilizada por um país para produção tanto para uso doméstico quanto para exportação para países que não têm capacidade de fabricação, inclusive via COVAX.