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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Governo ignora cobrança da ONU sobre corte no fornecimento de absorventes

Ato em embaixada do Brasil em Paris usa absorventes para atacar Bolsonaro - Coletivo Alerta França Brasil/MD18 Ubuntu Audiovisual
Ato em embaixada do Brasil em Paris usa absorventes para atacar Bolsonaro Imagem: Coletivo Alerta França Brasil/MD18 Ubuntu Audiovisual

Maria Carolina Trevisan

11/01/2022 04h00

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O governo de Jair Bolsonaro ignorou um pedido feito por relatores da ONU (Organização das Nações Unidas) para que o Executivo esclarecesse os vetos à distribuição de absorventes para mulheres e meninas em situação de vulnerabilidade.

Em comunicação enviada no dia 19 de outubro pelo Grupo de Trabalho contra a Discriminação de Mulheres e Meninas e pelas Relatorias Especiais da ONU sobre o direito à saúde e violência contra mulher, o governo brasileiro é solicitado a explicar as razões dos vetos. As relatorias ainda querem saber quais medidas Brasília tomará para assegurar o acesso de mulheres e meninas a produtos de higiene menstrual.

A carta enviada pelos procedimentos especiais da ONU ocorreu depois que a entidade recebeu uma denúncia liderada pela bancada do PSOL e que foi apoiada por outros 61 deputados e deputadas de diferentes partidos. Nela, os parlamentares pediam ações por parte dos organismos internacionais diante de mais uma evidência do desmonte de direitos no país.

Naquele momento, a decisão do governo gerou revolta das entidades de direitos humanos.

Diante da denúncia, as relatorias da ONU pediram ao governo brasileiro que "tome todos os passos necessários para tornar lei o Projeto de Lei e os artigos que foram vetados".

Além disso, também pediram ao governo para "tomar medidas adicionais para melhorar o acesso de mulheres e meninas a água e saneamento em suas casas, escolas, espaços de trabalho e instalações públicas, assim como promover campanhas de conscientização sobre menstruação e saúde sexual e reprodutiva para combater estigmas e estereótipos prejudiciais".

Mais de dois meses depois da cobrança, a ONU continua sem uma resposta por parte do governo brasileiro. Diante dos vetos, alguns estados e municípios tomaram iniciativas próprias para a distribuição de absorventes a meninas e mulheres em situação de vulnerabilidade.

"O governo brasileiro não tem comentários à carta de alegações OL BRA 12/2021", esclareceu o Itamaraty, em resposta à reportagem. "As razões para vetar parcialmente a lei 14.214, de 6 de outubro de 2021, estão contidas na mensagem presidencial 503, da mesma data", disse. "A referida proposta legislativa para instituição do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual não cumpriu com os requisitos legais necessários, por não ter incluído indicações quanto à fonte orçamentária para sua implementação, o que viola dispositivos jurídicos tais como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei de Diretrizes Orçamentárias 2021", completou.

Em resposta a um pedido de esclarecimento por parte da coluna, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos informou que "a lei que institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual foi aprovada sem previsão orçamentária para distribuição gratuita de absorventes higiênicos a mulheres vulneráveis, presidiárias e estudantes, o que ampara juridicamente o veto presidencial".

"O governo federal, no entanto, não revogou a nova legislação e, neste ano, trabalha para implementar esta política pública por meio de recursos do orçamento de 2022", esclareceu. "O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos considera esta ação, na medida que for devidamente colocada em prática, de suma importância para a saúde da mulher e adolescentes e que reforça a distribuição de absorventes que já ocorre em diversos Estados", aponta a pasta liderada por Damares Alves.

Tem sido uma prática recorrente do governo Bolsonaro tomar determinadas medidas e depois voltar atrás. É o que acontece com a vacinação de crianças, por exemplo. Reage à pressão da opinião pública.

Legalmente, o silêncio do país não gera consequências. Mas, entre os relatores, a atitude é considerada como "reveladora" de um governo que comete violações aos direitos humanos. Nos documentos ainda ficará exposto que o Brasil não deu uma resposta, aprofundando o isolamento do país em temas relacionados a gênero.

Do ponto de vista das políticas públicas de saúde da mulher, a falta de compromisso do governo brasileiro com uma questão tão básica e fundamental quanto a distribuição gratuita de absorventes, revela prioridades. A falta do absorvente restringe muitos outros direitos: frequentar a escola, o trabalho e ter saúde. As pessoas que menstruam e não têm recursos financeiros para a higiene menstrual podem ter de apelar a meios de conter o sangramento que fragilizam a saúde e causam infecções e outros problemas ginecológicos, como o uso de papel higiênico, roupas velhas e miolo de pão.

É como se o acesso ao absorvente fosse a base que abre espaço para chegar a outros direitos. Sem ele, toda a mobilidade é cerceada, toda a socialização é afetada. O relatório "Livre para menstruar", elaborado pelo movimento Girl Up, mostra que 20% das adolescentes não possuem água tratada em casa e 213 mil estudam em escolas em que não há condições apropriadas de higiene, dessas, 65% são negras. A dignidade menstrual é, também, uma questão racial.

A falta do absorvente é extremamente limitante e as expõem a doenças, vulnerabiliza estudo e trabalho. Ou seja, aprofunda as desigualdades. Por isso, é tão fundamental — e prioritário — esse acesso.

A dignidade menstrual deveria implicar recursos, infraestrutura e disseminação de conhecimento por parte do Estado como forma de contemplar o acesso a direitos humanos básicos.

Constrangimento internacional

A política adotada pelo Brasil no que se refere aos direitos das mulheres no âmbito internacional tem sido alvo de intensa preocupação por parte dos relatores da ONU. Nos últimos meses, cartas foram enviadas sobre a pressão feita pelo governo contra o aborto legal no país, assim como sobre outras violações de direitos humanos.

Na carta, os relatores não deixaram dúvidas de que o comportamento do Estado brasileiro é alvo de críticas.

"Gostaríamos de expressar nossa preocupação de que o projeto de lei acima mencionado tenha sido vetado em suas disposições mais cruciais, que garantiriam o livre acesso aos produtos de higiene menstrual para mulheres e meninas de baixa renda e para aquelas privadas de liberdade", afirma o documento dos relatores da ONU.

"O amplo acesso a produtos de higiene menstrual, juntamente com instalações adequadas de água e saneamento e acesso a serviços e cuidados de saúde, são condições chave para garantir o direito das mulheres e meninas à saúde, bem como outros direitos relacionados à sua plena participação na vida pública, econômica e social", alerta.