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Jamil Chade

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

No Brasil ou na Ucrânia, resgatar os fatos passou a ser um ato subversivo

Jair Bolsonaro é representado segurando bandeira cujo mastro é um palito de fósforo, em prévia do Carnaval de Colônia, na Alemanha - REUTERS/Ralph Orlowski
Jair Bolsonaro é representado segurando bandeira cujo mastro é um palito de fósforo, em prévia do Carnaval de Colônia, na Alemanha Imagem: REUTERS/Ralph Orlowski

Colunista do UOL

27/03/2022 08h05

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A guerra, a tecnologia e um regime autoritário levaram o mundo a uma encruzilhada, enquanto a verdade e o óbvio foram perdidos.

Quem fez esse alerta não foi um ativista pela democracia ou um hacker do século 21. A constatação é de George Orwell. O ano? 1936, o início da Guerra Civil na Espanha, o teatro de ensaio para a ruptura no conceito de Humanidade que seria estabelecido na Segunda Guerra Mundial.

Naquele momento, Orwell se surpreenderia com os acontecimentos que marcaram o início do conflito espanhol. Para ele, com o totalitarismo e as novas tecnologias daquele momento, era impossível saber de fato o que estava acontecendo na guerra.

A verdade escorregava entre os dedos do leitor e parecia perder força com um valor no mundo. Tal constatação levou o escritor ao desespero, chegando a declarar que a "história parou em 1936".

O público apenas teria versões concorrentes, enquanto os ataques sobre a verdade e a irrelevância dos fatos passavam ser tão ameaçadoras quanto às bombas.

Em um texto de 1943 e refletindo sobre 1936, ele diria:

"Reparei que nenhum acontecimento é relatado corretamente num jornal, mas na Espanha, pela primeira vez, vi reportagens de jornais que não tinham qualquer relação com os fatos, nem mesmo a relação que está implícita numa mentira vulgar. Vi grandes batalhas noticiadas onde não tinha havido combates, e silêncio total onde centenas de homens tinham sido mortos. Vi tropas que tinham lutado corajosamente denunciadas como covardes e traidores, e outros que nunca tinham visto um tiro disparado serem saudados como os heróis de vitórias imaginárias; e vi jornais em Londres a vender estas mentiras e intelectuais ávidos a construir superestruturas emocionais sobre acontecimentos que nunca tinham acontecido. Vi, de fato, a história ser escrita não em termos do que aconteceu, mas do que deveria ter acontecido de acordo com várias 'linhas partidárias'".

Quase cem anos depois, no Brasil ou na Rússia, as ameaças se repetem. Regimes que esnobam a democracia, aliados às novas tecnologias, permitem criar um cenário no qual a verdade não existe mais.

Para grupos no poder no Kremlin e no Planalto, a realidade existe para ser manipulada.

Substitui-se a história por mitos e versões. Sobre o passado e sobre o futuro. Diariamente mentem como parte de uma estratégia política deliberada.

Na Rússia, jornalistas são ameaçados com 15 anos de prisão caso optem por...fazer jornalismo. Palavras óbvias como "guerra" passaram a ser censuradas e mais de 16 mil pessoas já foram detidas em cidades russas por realizar protestos contra o conflito. Enquanto isso, crimes de guerra vão se empilhando sobre a longa mesa de Putin.

Já em parte da comunidade internacional, optou-se por convenientemente ignorar a existência de núcleos de extrema-direita apoiando o exército ucraniano.

No Brasil, nesta próxima semana, voltaremos a ouvir da boca das autoridades máximas do país que o Golpe de 64 não existiu. "A floresta não queima", brada ainda um deles, desafiando satélites e o odor da morte. Enquanto o mundo denuncia ameaças contra indígenas no país, o chefe do governo zomba dos fatos e recebe um cocar e uma medalha profanada.

A corrupção? Oremos.

O ano de 2022, seja pela guerra na Ucrânia ou pela eleição no Brasil, abre uma nova fase da guerra contra a verdade. Em locais tão distantes, resgatar os fatos passou a ser um ato subversivo.