Famílias de vítimas da ditadura pedem apoio da ONU após decisão de Dino
Famílias de vítimas do regime militar, entidades de direitos humanos e ativistas recorrem à ONU para pressionar o Brasil a reavaliar sua lei de Anistia. Numa carta enviada para Aua Baldé, presidente-relatora do Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados e Involuntários da Organização das Nações Unidas (ONU), o grupo pede o apoio internacional para que os crimes da ditadura não continuem impunes.
A Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia é composta por entidades como Tortura Nunca Mais de São Paulo e da Bahia, Coletivo de Filhos e Netos por Memória, Verdade, Justiça, Instituto Vladimir Herzog, Comissão Camponesa da Verdade e pela Associação Brasileira de Anistiados Políticos. Atuam também na coalizão familiares de vítimas, entre elas Vera Paiva, filha mais velha de Rubens e Eunice Paiva.
O documento foi enviado depois da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino, que estabeleceu que a Lei de Anistia de 1979 não pode proteger os responsáveis pelos desaparecimentos forçados da ditadura militar.
Seu argumento é de que a ocultação de cadáver se trata de um crime continuado, cujos efeitos não cessam até a localização do corpo. Portanto, a lei de Anistia não poderia proteger os autores desses crimes.
No despacho, o ministro ainda cita o filme "Ainda Estou Aqui" - derivado do livro de Marcelo Rubens Paiva e estrelado por Fernanda Torres (Eunice). Segundo ele, a obra tem "comovido milhões de brasileiros e estrangeiros". "A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos os seus direitos quanto aos familiares desaparecidos. Nunca puderam velá-los e sepultá-los, apesar de buscas obstinadas como a de Zuzu Angel à procura do seu filho", disse.
Agora, a decisão de Dino será alvo de um debate entre os demais ministros do Supremo, abrindo uma brecha sem precedentes no caso da responsabilização para os crimes cometidos na ditadura militar (1964-1985).
Para a a Coalizão, a decisão segue "os parâmetros internacionais direitos humanos" e espera, agora, que o STF se alinhe definitivamente à normativa internacional neste tema. Nos últimos anos, diferentes mecanismos da ONU pediram o fim da lei de Anistia no Brasil.
No documento, obtido com exclusividade pelo UOL, o grupo destaca que, "agora, quando se forma um relativo consenso social em torno da necessidade de responsabilização dos que atentaram contra a democracia, a questão sobre os crimes do passado se torna inevitável".
"Se é inaceitável uma anistia hoje, a anistia de ontem deve ser igualmente inaceitável", afirma.
"Nesse sentido, o STF deve ser consistente, e emanar preceitos que apontem para uma responsabilização na apenas da mais recente tentativa de golpe, mas também em relação ao último golpe de Estado efetivado contra a democracia brasileira em 1964", constatam as entidades.
"Temos convicção de que a recente decisão do ministro Dino é sinal de que o Supremo entendeu a envergadura de sua tarefa histórica neste momento", apontam.
Segundo a carta, os grupos continuarão a cobrar que o STF "finalmente retome o debate sobre a Lei de Anistia de 1979".
Mas o pedido também é direcionado ao mecanismo da ONU. "Contamos com este Grupo de Trabalho para que se mantenha atento e vigilante no que diz respeito à luta das vítimas de desaparecimentos forçados no Brasil", pedem.
Argumentos
O grupo de entidades e parentes de vítimas descartam que a Lei de Anistia é "frontalmente contrária aos pactos internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário".
"Não à toa, o país já foi condenado por duas vezes (caso Guerrilha do Araguaia, caso Herzog) pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em razão dos crimes da ditadura. Nas duas ocasiões, a Corte manifestou que a Lei de Anistia de 1979 não pode ser um obstáculo ao direito à justiça das vítimas e que ela é incompatível com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a qual o Brasil tem o dever e a obrigação de dar cumprimento", apontou.
A carta informa que, no caso da Lei de Anistia, existem duas ações em curso no Supremo. "É inexplicável que, há dez anos, essas ações estejam aguardando andamento e um pronunciamento por parte da Corte Suprema do país, em confrontação com o direito das vítimas de se obter uma resposta do sistema de justiça em relação a este tema", afirmam.
"É dever do Supremo Tribunal Federal retomar a discussão sobre os crimes da ditadura militar, considerando que são graves violações aos direitos humanos, imprescritíveis e impassíveis de anistia, segundo a ordem jurídica internacional e a melhor interpretação da Constituição de 1988 conforme os preceitos de direitos humanos", defendem as entidades.
Impunidade abriu caminho para outras tentativas de golpes
Um dos argumentos das entidades é o papel "exemplar" que STF tem cumprido em relação à mais recente tentativa de golpe de Estado comandada por Bolsonaro e pelos militares nos últimos anos.
"As manifestações de seus ministros nos autos, bem como seus posicionamentos públicos, são inequívocas em afirmar que a impunidade dos golpistas não é uma opção. Que não é possível pacificar o país e consolidar a democracia sem a devida responsabilização dos criminosos", destacam.
"Os movimentos que compõem a Coalizão Memória, os familiares de mortos e desaparecidos políticos e os ex-presos políticos sempre afirmaram a mesma coisa em relação à anistia de 1979", destacam.
"Mas as elites políticas do país optaram, até hoje, pela via do esquecimento, da reconciliação extorquida e do silenciamento forçado, sacrificando o direito das vítimas e familiares em conhecer a verdade, exercer a memória e obter justiça em relação a esses crimes contra a humanidade", lamentam.
Para eles, essa opção "abriu caminho para a nova tentativa de golpe de 2022 e 2023".
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