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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Democracia brasileira não morreu, mas está ameaçada, diz Levitsky

O cientista político norte-americano Steven Levitsky - Karime Xavier/Folhapress
O cientista político norte-americano Steven Levitsky Imagem: Karime Xavier/Folhapress

Colunista do UOL

28/05/2022 04h00

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A democracia brasileira não morreu. Mas está seriamente ameaçada. O alerta é de Steve Levitsky, cientista político, professor da Universidade de Harvard e autor do best-seller "Como as Democracias Morrem" (2018).

Diretor do David Rockefeller Center for Latin American Studies, o americano deixa claro que "o Brasil importa" e que uma eventual ruptura institucional no país e o êxito de um golpe por parte de Jair Bolsonaro terá um efeito "terrível" para a democracia na América Latina. Em sua avaliação, central no destino do país será a postura que adotará o Exército.

Levitsky ainda alerta que, para barrar a tentativa de golpe, a oposição precisa criar uma aliança ampla para derrotar Bolsonaro, com um candidato único. Eis os principais trechos da entrevista. Sua versão completa foi ao ar no Canal MyNews.

A democracia brasileira está ameaçada?

Sim, acho que sim. Sempre que uma democracia presidencial, como a do Brasil ou dos EUA, elege para a presidência alguém que não tem compromisso com as regras democráticas do jogo, você está colocando a democracia em risco. Nós vimos isso nos EUA, que têm instituições democráticas muito fortes. É uma república constitucional já há dois séculos. Apesar disso, apesar da força das instituições democráticas dos EUA, Donald Trump quase realizou um autogolpe presidencial em 2020 e no começo de 2021.

Ele fez um esforço sério para roubar uma eleição e levou ao que foi quase um bloqueio violento da transferência de poder. Isso aconteceu nos EUA por ter eleito um presidente autoritário.

Certamente, uma crise similar poderia ocorrer no Brasil. Então, a democracia brasileira não está morta. A democracia brasileira não está morrendo. Ela tem algumas fontes reais de força. Mas, sob ameaça, eu diria que sim.

Naquele momento nos EUA um dos argumentos que ouvimos era de que havia uma fraude eleitoral. Sem surpresa, esse é exatamente o argumento que já está sendo usado quatro meses antes da eleição no Brasil. Como podemos tomar medidas para proteger o sistema para evitar a repetição do mesmo cenário dos EUA?

Em primeiro lugar, o Brasil tem um sistema eleitoral muito bom. Muito melhor do que temos nos EUA. O sistema americano é muito mais vulnerável à fraude e à manipulação do que o brasileiro. Então, o fato de o Congresso brasileiro ter bloqueado as mudanças no sistema eleitoral, o retorno à cédula como Bolsonaro propôs, acho que foi um movimento muito positivo.

A outra coisa é aumentar a conscientização. É muito mais difícil roubar uma eleição ou virar o resultado de uma eleição se houver uma grande discussão pública a respeito. É mais fácil roubar uma eleição de surpresa. Então, o fato de a sociedade civil brasileira, a mídia brasileira, a oposição brasileira estarem prontas para isso, acho que é importante.

A outra medida que eu acho que poderia ser tomada, que não foi tomada no Brasil, infelizmente, é que quando você encara uma ameaça autoritária, como Trump ou como Bolsonaro, é muito importante construir uma coalizão muito ampla contra aquele autoritário.

Se houver chance de que o presidente vai tentar criar uma crise e dizer que houve fraude, e tentar cancelar a eleição, virar o resultado da eleição, a melhor forma de evitar isso é uma grande vitória para derrotá-lo: 60% a 40% no primeiro turno. Isso requer que a oposição inteira - do PT à centro-direita -, se una no primeiro turno.

As pessoas vão dizer que é politicamente impossível. Mas eu acho que essa é a melhor forma de assegurar uma vitória de lavada. A melhor forma de evitar a fraude é uma vitória de lavada. E a melhor maneira de assegurar uma vitória de lavada é um único candidato em uma vitória no primeiro turno. Infelizmente, isso não parece que vai acontecer.

Vimos na Hungria uma coalizão da oposição e a apresentação de um candidato único. E mesmo assim, Viktor Orbán voltou a vencer a eleição. O que a Hungria nos ensina sobre a tomada do poder por parte desses líderes?

Quero fazer uma distinção entre a Hungria e o Brasil. Mas uma lição para a qual você aponta e acho que está certo é que, quanto mais tempo esses caras passam no poder, mais fácil é para eles consolidarem o poder. E mexer no campo de jogo contra a oposição. Orbán está no poder há mais de uma década. Por volta de 2021 e 2022, ele controlava a mídia inteira, ele controlava o Judiciário. Então estava muito desigual o campo de jogo. A oposição fez a coisa certa ao se unir. A Hungria se parece mais com a Venezuela que com o Brasil. A oposição está lutando uma luta injusta, e quando as oposições fazem tudo certo em um regime autoritário, eles frequentemente perdem.

No Brasil, você tem uma figura autoritária que pode fazer muito dano ao sistema, mas que ainda não foi capaz de desequilibrar o campo de jogo - ele não controla a imprensa, ele não controla a sociedade civil, e não enfraqueceu a oposição do mesmo jeito que fez Orbán. Então, a união da oposição vai trazer muito mais resultado no Brasil do que na Hungria.

E qual o papel do Exército?

O Exército é um ator absolutamente crítico. Você não consegue fazer um autogolpe presidencial sem a cooperação de algum nível das forças armadas. No final das contas, foi por isso que Trump fracassou. Porque o Exército não ia se deixar emprestar para as aventuras dele. No Brasil, essa é uma pergunta em aberto. Porque os EUA têm uma longa tradição de controle civil sobre as forças armadas, a ideia de Trump mobilizar os militares, portanto, seria muito difícil. Com Bolsonaro, ele tem estado alinhando os militares, dando poder aos militares, prestando favores aos militares.

É muito curioso que o Bolsonaro constantemente copia Trump. Ele copiou até fracassos. A política de covid de Trump foi um desastre. Bolsonaro parece tê-la copiado. Trump tenta um autogolpe, fracassa e perde, e ele está fora do poder. Bolsonaro parece que está seguindo um manual similar.

Se os militares brasileiros se recusarem a cooperar com suas aventuras, acho que Bolsonaro também fracassará. Mas se ele puder ter a cooperação de alguma forma dos militares, ele pode ter um resultado diferente e mais sorte que Trump. Até agora, apesar de tudo, parece que o comando militar dificilmente vai cooperar com Bolsonaro.

De que maneira a comunidade internacional pode evitar um autogolpe no Brasil?

É um papel bem pequeno, especialmente em um país grande como os EUA ou o Brasil. Em um país menor, como Honduras ou Bolívia, ela poderia ter um papel maior. Mas a reação internacional não é tão importante ou influente como era nos anos 90.

Os anos 90 foram a década da democracia global. A URSS colapsou, o comunismo colapsou e a democracia de estilo ocidental era o único jogo da cidade. Os EUA e a Europa Ocidental eram as forças militares, econômicas, políticas e culturais na Terra. Naquele momento, a resposta internacional era muito importante. Nem tanto para o Brasil, que é um país muito grande. Mas em muitos países da América Latina, os EUA hoje têm muito menos influência. O Ocidente liberal tem muito menos influência do que tinha há 30 anos. Isso por causa da inevitável dispersão de poder pelo globo, o papel da Rússia e China.

Então, uma rápida e decisiva reação internacional ajuda. Mas não acho que foi decisiva no caso de Trump e Biden. E não acho que será decisivo no caso de Bolsonaro e Lula. Mas ajuda.

O que está em jogo na América Latina se a eleição brasileira se transformar num caos institucional?

É difícil dizer. Mas meu palpite é que há muito em jogo. De novo, o Brasil é muito grande e muito influente. Não é difícil lembrar de 1964, quando o golpe no Brasil teve um poderoso efeito de demonstração em todo o resto da região. O Brasil foi, em muitos aspectos, o primeiro do seu tipo, que é agora conhecido como regime burocrático autoritário. E depois do golpe brasileiro e de seu sucesso, e o sucesso dos militares nos primeiros anos, o Brasil teve muita influência em boa parte da região.

Mesmo democracias duradouras, como Uruguai e Chile, seguiram o exemplo. Não quero dizer que tudo o que o Brasil faz é copiado. Mas o que acontece no Brasil importa muito mais na América Latina do que o que acontece na Nicarágua, Bolívia ou Equador.

Isso será observado de perto. Estive preocupado com isso. Se Bolsonaro é seu modelo e alcançar resultados, ele irá se tornar um modelo para o resto da região. Já vimos pequenos Bolsonaros emergindo em lugares como o Peru, Chile e outros. Mas se Bolsonaro obtiver sucesso, se ele se transformar em modelo para a região, isso será terrível para a democracia.

Qual a imagem que o Brasil hoje projeta ao exterior?

O Brasil sofreu um período bem difícil de quase uma década agora. Os últimos sete ou oito anos foram muito difíceis. Em certo sentido, foi a tempestade perfeita. Uma das piores crises econômicas na história do país, combinada com o que pode ter sido o maior escândalo de corrupção na democracia ocidental na história, combinado com um problema terrível de criminalidade violenta dando ascensão à eleição de um homem do qual muitos brasileiros não têm orgulho.

É difícil, como era difícil para um americano viajar ao exterior e admitir ser americano, porque nosso presidente foi Trump por quatro anos. Muitos brasileiros se sentem assim. Bolsonaro é, para muitas pessoas fora do Brasil, uma figura bem repugnante. Então, obviamente, o Brasil, com todo seu potencial e seu real poder econômico e geopolítico, está passando por um período muito difícil. Sua imagem como pais é a de que está em declínio, de que está meio que fracassando.

Mas o Brasil já passou por isso antes. E o Brasil, como os EUA, tem muitas vantagens também. O Brasil não é a Nicarágua, nem a Venezuela. O Brasil tem uma sociedade civil forte, tem um estado forte e outras instituições. Assim como os EUA, existe essa percepção sobre o Brasil de que muita coisa pode dar errado, mas a matéria-prima está lá para que as coisas deem muito certo e para que o Brasil faça muitas coisas boas, como fez no começo do século 21.

O Brasil e os EUA, apesar de todas as crises, têm o potencial de ser duas das democracias multirraciais mais interessantes do mundo.

Não estou falando pelo exterior. Mas por mim. Tenho muita esperança no Brasil. Aqueles que nos importamos com a democracia estamos observando de muito perto o que está ocorrendo com o Brasil. Sabemos que é muito importante.