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O jornalista italiano ameaçado pelo fascismo
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"Você vai pagar, infame". Foram essas palavras que, num certo dia, o jornalista italiano Paolo Berizzi encontrou pichadas no muro de sua casa numa certa manhã de 2018. O que ele não imaginaria é que aquilo seria o início de um pesadelo que viu sua vida ser virada do avesso.
Hoje com 50 anos, Berizzi faz parte do grupo de jornalistas italianos que vivem sob proteção do Estado. Na Itália, são 22 profissionais nesta situação. Mas Berizzi é o único que recebeu escolta por motivação política.
Por causa de seu trabalho, virou alvo de grupos neofascistas e neonazistas. Após cinco anos de ameaças constantes e vários episódios de violência - uma suástica, um crucifixo e símbolos da SS foram gravados em seu carro -, ele passou a receber escolta policial. Mas enquanto o jornalista precisou se adaptar ao novo modo de vida tendo sempre dois policiais ao lado para protegê-lo, os fascistas no novo milênio e a rede que os alimenta desmascarados por suas reportagens, continuam livres e agindo impunemente.
Sentado no terraço de seu apartamento de onde é possível ter um ampla visão de Bergamo, cidade em que mora, Berizzi falou com a reportagem do UOL. Com um tom de voz sereno, contou sua história. Ele tinha acabado de chegar da casa de sua mãe e levado alguns cannolis sicilianos para ela. Sua mãe, assim como sua família, sofreram e continuam sofrendo com as ameaças que ele recebe, mas tentam não demonstrar para não deixá-lo preocupado.
"Minha filha tinha 13 anos quando essas ameaças começaram a ficar mais violentas e ela ficou traumatizada. Hoje está com 17 anos. Não posso mais esconder nada e isso, obviamente, gera uma grande ansiedade nela", diz o italiano que é autor de vários livros de denúncia contra o fascismo.
Foi justamente após a publicação do NazItalia - Viagem a um país que se redescobriu fascista, em 2018, que as ameaças se intensificaram, saíram do campo virtual das redes sociais e foram parar em folhetos colados ao lado de fora de algumas redações, em faixas penduradas nas ruas, no carro destruído e nos muros de sua casa.
O livro trata da saudação romana, dos torcedores ultras e a ascensão da Liga Norte com os votos de extremistas de direita. Era outubro daquele ano quando "mãos covardes" - como ele mesmo disse em um tuíte - lhe deram um bom dia escrevendo nos muros de sua residência que era um infame e que pagaria por isso.
Tentativa de censura e saudação nazista
Um ano mais tarde, em junho de 2019, quando esteve em Verona para apresentar o livro, foi surpreendido com um protesto organizado pelos torcedores do Hellas Verona, que se sentiram ofendidos com a presença do jornalista na cidade. Eles tinham pedido ao prefeito que impedisse Berizzi de apresentasse o livro, mas não foram escutados. Meses antes, ele ganhou a escolta da polícia. "O teatro estava rodeado por policiais militares e a paisana e, mesmo assim, eles apareceram. Se reuniram diante do teatro e começaram a fazer a saudação nazista", diz Berizzi.
Muitas das ameaças recebidas foram reivindicadas pelos militantes do Do.Ra., um grupo neonazista de Varese, que está sendo investigado desde 2017 pelo Ministério Público de Busto por tentativa de reconstituição do partido fascista. Outras ainda foram reivindicadas pelo grupo Manipolo Avanguardia de Bergamo, que é filiado ao Do.Ra.
Para o jornalista "não se tem mais vergonha de se proclamar fascista". "O fascismo foi aceito no país e liberalizado com a ascensão de partidos da extrema direita como a Liga Norte e Irmãos da Itália, que hoje está no poder", diz.
Giorgia Meloni, que foi eleita a primeira mulher premiê do país, lidera o partido de extrema direita Irmãos da Italia, cujo símbolo é a chama tricolor, a mesma que arde no túmulo de Benito Mussolini.
Aliás, o grupo nasceu do Movimento Social Italiano (Msi), que foi fundado por Giorgio Almirante, ex-ministro de Mussolini. Meloni, que hoje tenta moderar o discurso, chegou a declarar no passado que o fascismo "fazia parte da história nacional", e deu sinais contraditórios sobre o líder fascista.
Meloni, ainda em agosto de 2020, chegou a publicar uma mensagem nas redes sociais na qual zombava Berizzi pelo fato de ele ter uma escolta. "E essa é a nossa primeira ministra hoje", suspira o italiano.
"Viver sob escolta é uma coisa complicada", diz. "Tive que redimensionar tudo, pois minha vida virou de cabeça para baixo. Tudo mudou, o modo de viver, de trabalhar - a gente precisa das fontes e não são todas que aceitam falar com um jornalista que tem dois policiais ao lado o tempo todo - tive que renunciar a uma parcela de liberdade", admite.
"Não sou mais livre para sair sozinho, para fazer o que quiser, quando quiser, portanto o meu relacionamento com as pessoas que amo também mudou. Preciso informar os homens da escolta com bastante antecedência de meus movimentos. Eu não escolhi (a escolta), ela me foi dada pelo governo que entendeu que minha vida estava em perigo", declara.
Enfrentar o passado
Entre um gole de água e um olhar que busca respostas no horizonte infinito, Berizzi fala sobre como é anômalo o fato que a extrema direita tenha vencido no país, justamente no berço do fascismo e local onde também deveria ter sido enterrado.
No lugar de uma ofensiva para sufocar o movimento, ele foi normalizado. "Na Alemanha, se um candidato disser que Hitler foi o melhor político nos últimos 50 anos, ele é proibido de se candidatar. Mas aqui na Itália não, e isso porque temos uma constituição que diz que somos um país antifascista", diz. "Esse é o efeito da normalização, ninguém mais se surpreende, se alguém disser que o fascismo, afinal, também pode ter sido uma coisa boa", afirma.
Sua avaliação é que a normalização foi resultado de a Itália não ter enfrentado seu passado fascista. Colocaram ele para dormir, mas nã o calaram. "Um país que não presta contas de seu passado é um país que tem um presente difícil e um futuro incerto. E esta é exatamente a situação que estamos vivendo. Não soubemos ouvir e entender que o fascismo não estava morto", diz o jornalista.
Ao falar sobre a realidade dos movimentos de extrema direita, ele menciona diretamente o caso do Brasil de Jair Bolsonaro.
"Existe um fenômeno transnacional de normalização do ódio e do fascismo que não se limita à Itália. Penso no Brasil de Bolsonaro, nos EUA de Trump, na Hungria de Orban, penso em todos aqueles países que de alguma forma viram suas democracias escorregarem lentamente", diz Berizzi.
Para ele, o bolsonarismo é a representação mais evidente de como o fascismo não precisa de símbolos e nem mesmo ser chamado por esse nome. "Bolsonaro te faz entender a tendência fascista em relação a negação dos direitos humanos e ao autoritarismo", diz ele, que acredita que uma democracia também possa morrer lentamente, de modo gradual, onde militares ocupam cada vez mais espaços no corpo político do governo de um país.
O ódio como denominador comum
Para o jornalista, a propaganda nacionalista e com ênfase na soberania é a gasolina que alimenta a política do ódio. "O regime do ódio exerce um poder sobre as pessoas, sobretudo sobre os mais jovens. Quanto mais o medo aumenta, mais aumenta o ódio. E o ódio caminha de mãos dadas com a eficiência da propaganda destes líderes políticos extremistas. Eles difundem o ódio, que entra na veia das pessoas, se transforma em arma letal porque transforma as palavras em pedras, que depois viram projéteis", diz.
Esse mesmo ódio é que os fascistas descarregam sobre Berizzi. Hoje, independentemente do que ele escreva, é insultado e ameaçado de forma constante nas redes sociais. "Vai ser guerra", "Ajoelhe-se nojento", "Fique calmo, vamos te procurar mesmo nas férias", são alguns exemplos de intimidação.
Mas se os trolls achavam que podiam contar com a eterna impunidade, Berizzi optou por denunciar os ataques. Hoje, existem 16 inquéritos abertos em vários MPs italianos por ameaça agravada. Destes 16 casos, um deles foi julgado e, no dia 7 de novembro, o tribunal de Bergamo vai emitir uma sentença.
Jornalista, com suas ações e a opção por continuar escrevendo, mostra que optou por um caminho, o de defender a democracia. Aqueles que o ameaçam, não o assustam e não o detém. "Amo demais meu trabalho e quero continuar escrevendo e denunciando", diz Berizzi, o jornalista que um dia foi definido como o caçador de fascistas.
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