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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Acordo Mercosul-UE está 'muito próximo', revela chanceler português

O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e Lula em encontro em São Paulo no ano passado - Ricardo Stuckert - 03.jul.22
O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e Lula em encontro em São Paulo no ano passado Imagem: Ricardo Stuckert - 03.jul.22

Colunista do UOL

01/03/2023 04h00

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Um acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia está "muito próximo" e, em poucas semanas, Bruxelas enviará ao Brasil uma missão para lidar com os últimos impasses para permitir que um entendimento possa finalmente se concretizar. O anúncio é do ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, João Gomes Cravinho.

Em entrevista exclusiva ao UOL, o chanceler português falou da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para Lisboa, no final de abril, e a retomada da relação "normal" entre os dois países. Durante o governo anterior, Portugal não recebeu nenhuma visita oficial de Jair Bolsonaro.

Para o chefe da diplomacia de Portugal, o acordo entre a Europa e o Brasil não é apenas um entendimento comercial. Segundo ele, o pacto tem um valor estratégico, principalmente diante da perda de espaço dos europeus do mercado brasileiro nos últimos dez anos.

Se o processo negociador começou em 1999, o projeto foi interrompido em 2006 e, por anos, patinou diante de um desacordo sobre as ofertas de abertura de mercados de ambos os lados. Em 2019, com Jair Bolsonaro, um entendimento foi concluído. Mas incompleto em temas como clima e desmatamento, além de cotas baixas para as exportações brasileiras.

Agora, Lula e líderes europeus querem selar o acordo, num cálculo geopolítico da importância de uma aproximação entre América do Sul e Europa como um contrapeso diante da crescente rivalidade entre China e EUA.

O ministro não escondeu ainda que Portugal ficou "surpreso" diante da decisão do governo anterior de não assinar o prêmio Camões de Literatura para Chico Buarque. Agora, a entrega da homenagem que deveria ter ocorrido em 2019 será realizada em Lisboa com a presença de Lula.

Eis os principais trechos da entrevista, concedida na sede da ONU em Genebra:

Jamil Chade: Quais pontos devem ser prioridade na viagem de Lula para Portugal?

João Gomes Cravinho: A visita do presidente Lula tem dois componentes. É uma visita de estado e também a volta da cúpula Brasil-Portugal, que não ocorria desde 2016. Há, portanto, muito trabalho para recuperar o tempo perdido. Essencialmente, muitas coisas mudaram nos últimos sete anos. Há muita coisa que podemos fazer juntos no campo de energia renovável. A transição verde vai ser um dos pontos centrais dessa reunião. Temos investimentos bastante significativos na área de hidrogênio, na área de energia renovável, onde Portugal é líder.

Nós olhamos Portugal como a porta de entrada natural do Brasil na Europa em termos do futuro do hidrogênio. O Brasil será seguramente um dos grandes produtores mundiais de hidrogênio verde e o transporte de hidrogênio significa que existe uma valorização dos portos mais próximos.

Outro setor é da saúde. Acreditamos que podemos trabalhar muito bem no plano bilateral, Iberoamericano e na ligação Mercosul-UE.

E como fica o processo de negociação do acordo Mercosul-União Europeia?

Neste momento, temos uma janela de oportunidade que dificilmente se repete. Perdeu-se muito tempo e terreno. Há dez anos, a Europa era o maior parceiro comercial do Brasil e da América Latina. Hoje, está atrás dos EUA e da China. E a melhor maneira de recuperar isso é por meio de um acordo.

Estamos muito próximos de um acordo. Não falta muito. Entendi que existe, no Brasil, uma grande vontade de finalizar o acordo e que é preciso ainda algumas afinações. Obviamente, o Brasil não está sozinho e temos a Argentina, Paraguai e Uruguai. Mas acredito que Brasil e Portugal podem ajudar a ser intérpretes. Nós podemos ajudar na Europa a interpretar a posição brasileira e do Mercosul e podemos ajudar moldar a resposta europeia às posições do Mercosul. O mais importante é essa vontade, compromisso e ideia política. Lula sublinhou esse compromisso.

Um dos pontos pendentes no acordo é a questão ambiental. Existe a perspectiva de que um protocolo adicional seja elaborado, com critérios de desmatamento. Como está esse ponto?

Penso que isso vai ser aceito para este Brasil, muito comprometido com o desmatamento. Isso é muito importante. Nas próximas semanas, uma delegação de Bruxelas vai viajar (ao Brasil) para trabalhar sobre isso no nível técnico. Estou razoavelmente otimista. Sei que temos trabalho a fazer. Mas sei também que Portugal e Brasil estão empenhados a fazer com que esse acordo finalmente veja a luz do dia.

Lula indicou que quer um acordo até meados do ano. Isso é possível?

É ambicioso, mas ele faz muito bem em ser ambicioso. Sem isso, não conseguiremos. Claro que é difícil colocar um prazo concreto. Mas, ao estabelecer um calendário ambicioso, o que está fazendo é dar estímulo aos serviços técnicos para fazer seu trabalho e criar condição para que ele possa tomar a decisão politica que precise tomar.

Como convencer a ala protecionista da Europa que o acordo não é ameaça?

Há uma coisa que mudou: a invasão da Ucrânia pela Russia. Isso deu aos países europeus uma consciência muito mais aprofundada sobre a relevância estratégica desse acordo. Isso não é apenas um acordo para umas trocas comerciais. É muito mais do que isso. É um acordo que vai permitir que nossas economias se aproximem no médio e longo prazo. E isso tem um valor estratégico muito grande.

Portanto, o que eu digo aos meus colegas europeus que têm, em seus países, determinados grupos econômicos que estão preocupados, é de que temos de levantar a cabeça e olhar para o grande quadro, ao invés de estarmos concentrados naquele que cada grupinho vai ganhar em 2023. O que está em jogo é muito mais amplo que isso.

E o que está em jogo?

Para a Europa, o que está em jogo é a capacidade de se reafirmar como um polo num mundo multipolar. Um instrumento fundamental para a UE é sua capacidade de relacionamento comercial e econômico. A América Latina é, para nós europeus, a parte do mundo onde, por obrigação, temos de melhor trabalhar. Falamos as mesmas línguas, não temos grandes dificuldades no relacionamento cultural e economicamente há uma grande complementaridade.

Temos um fluxo importante de brasileiros em Portugal. Isso vai ser tema da cúpula com Lula?

É natural que seja um tema. Há um grande número de brasileiros em Portugal e um número significativo de portugueses no Brasil. E nosso objetivo é criar condições para que o universo da CPLP seja um universo de cidadania partilhada. Não olhamos para os brasileiros como um estrangeiro como os outros. São apenas semi-estrangeiros. E o que queremos é que se integrem muito rapidamente e facilmente, e que tenham capacidade plena de exercício de cidadania. Desde os direitos políticos, incluindo direitos sociais.

Fizemos uma alteração importante na lei de estrangeiros e esperamos que, logo que fizer sentido no quadro legislativo brasileiro, que haja reciprocidade. Mas a necessidade que temos de encontrar soluções no curto prazo para alguns brasileiros que estão em situação irregular vai nos levar a avanços muito rápidos de cidadania comum.

Por anos, não houve uma visita de estado de um presidente do Brasil para Portugal. Como isso impacta na relação?

É evidente que o relacionamento no plano político é um reflexo, mas também um estímulo para outros níveis, seja econômico ou das possibilidades de compreensão de instituições. Portanto, receberemos Lula com particular alegria para se retomar essa intensidade normal do relacionamento.

Só agora será dado o prêmio Camões de 2019 para Chico Buarque. Portugal ficou surpreso com a recusa do ex-presidente Jair Bolsonaro de assinar o prêmio?

Foi uma supresa para Portugal. É um prêmio de um júri autônomo. O júri deliberou atribuir para Chico Buarque e foi uma surpresa que não tivesse tido a assinatura do presidente brasileiro. Mas isso vai se recuperar agora, esse tempo perdido.

Os brasileiros de extrema direita são uma ameaça para a segurança da visita de Lula, inclusive pelas ligações com a extrema direita portuguesa?

Não acredito que haja nenhum tipo de dificuldade. Em Portugal, no que se refere à segurança, nossas instituições funcionam. De outro lado, em termos de civismo, temos expectativas elevadas em relação ao que é o comportamento para uma visita de um chefe de estado estrangeiro.