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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Lula se distancia de Boric e Petro em denúncia contra Ortega

Colunista do UOL

06/03/2023 15h20

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O governo de Luiz Inácio Lula da Silva não se somou a um grupo de países latino-americanos que denunciou o regime de Daniel Ortega numa reunião da ONU nesta segunda-feira. O bloco formado por governos de esquerda como Chile e Colômbia - além de Peru, Paraguai e Equador - criticou as autoridades da Nicarágua por violações de direitos humanos.

O Brasil fazia parte do grupo latino-americano que é o responsável por propor resoluções no Conselho de Direitos Humanos sobre o país centro-americano e autor do projeto que criou a investigação sobre Ortega.

Mas, nesta segunda-feira, a delegação do Chile tomou a palavra para ler a acusação contra as autoridades nicaraguenses e deixou claro que o Brasil não fez parte.

O Itamaraty fará sua intervenção na ONU nesta terça-feira sobre o assunto. Mas não se somará à declaração conjunta. Ainda que o governo diga que está preocupado pela situação e que acompanha de perto a crise na Nicarágua, a intervenção deixará um espaço para a cooperação e diálogo com o regime local.

Internamente, a declaração liderada pelo Chile foi considerada como dura demais.

A ausência do Brasil no bloco chamou a atenção dos peritos, das vítimas de abusos de direitos humanos na Nicarágua e mesmo de governos estrangeiros. Um dos destaques é o fato de que tanto os governos liderados pela esquerda, como Gabriel Boric e Gustavo Petro, optaram por manter as críticas contra Ortega.

O discurso dos latino-americanos ocorreu depois que os peritos da ONU apresentaram os resultados de sua primeira investigação independente sobre a situação no país e que concluiu que crimes contra a humanidade foram cometidos pelo governo de Ortega por motivos políticos e contra a oposição ou qualquer voz dissonante.

No documento oficial, os peritos apontam que as decisões para cometer tais crimes vieram do "mais alto escalão".

"Os supostos abusos - que incluem execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias, tortura, privação arbitrária da nacionalidade e do direito de permanecer no próprio país - não são um fenômeno isolado, mas o produto do desmantelamento deliberado das instituições democráticas e da destruição do espaço cívico e democrático", disse o relatório.

"Estas violações e abusos estão sendo perpetrados de forma generalizada e sistemática por razões políticas, constituindo os crimes contra a humanidade de assassinato, prisão, tortura, incluindo violência sexual, deportação e perseguição por motivos políticos", disse o especialista independente Jan Simon, que presidiu o inquérito. "A população nicaraguense vive com medo das ações que o próprio governo possa tomar contra eles".

Segundo Simon, Ortega jamais respondeu a qualquer pedido de informação por parte de sua equipe.

O governo de Nicarágua rejeitou o informe, disse que não vai aceitar a nomeação dos peritos e o documento que é "cortina para aparentar legalidade inexistente". As autoridades de Ortega ainda apontaram que as denúncias são "falsas" e que seria uma "estratégia das potências" para minar sua "soberania". "Não temos medo", disse a delegação centro-americana.

Governo Boric lidera críticas

Diante do informe, governos de todo o mundo tomaram a palavra para condenar os atos no país centro-americano. Num comunicado lido pelo governo de esquerda do Chile, um bloco latino-americano apoiou o documento, o trabalho dos peritos e apontou para o risco de uma crise humanitária ainda maior.

A União Europeia condenou as violações de direitos humanos e os ataques contra a democracia e o estado de direito. Os governos da França, dos países escandinavos e de diversas partes do mundo também denunciaram a situação.

Já as autoridades americanas afirmaram estar "preocupadas pela deterioração" da situação e qualificou o comportamento do governo de "deplorável". Washington ainda pede que Ortega aceite colaborar com a ONU, que permita a restauração da democracia e que aceite observadores internacionais em suas eleições.

Brasil não adere à condenação

Na sexta-feira, o governo brasileiro já não aderiu a uma declaração de mais de 50 países, denunciando os crimes cometidos pelas autoridades do país centro-americano. Na lista da declaração conjunta estavam tradicionais potências ocidentais, como EUA, Alemanha ou França. Mas também governos de esquerda da América Latina como Chile e Colômbia. Peru, Paraguai e Equador também assinaram a declaração conjunta.

A reportagem apurou que o Brasil sugeriu um tom mais moderado no texto, mas as propostas do Itamaraty não foram aceitas e o governo Lula optou por não aderir.

O que mais diz a investigação?

Na apuração realizada pelos peritos internacionais, a lista de violações é ampla."As altas autoridades do governo conseguiram instrumentalizar os Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Eleitoral para desenvolver e implementar uma estrutura legal destinada a reprimir o exercício das liberdades fundamentais e perseguir pessoas contrárias", acrescentou
Simon. "O objetivo é eliminar, por diferentes meios, qualquer oposição no país".

O relatório identificou um padrão de execuções extrajudiciais realizadas por agentes da Polícia Nacional e membros de grupos armados pró-governamentais que agiram de forma conjunta e coordenada durante os protestos ocorridos entre 18 de abril e 23 de setembro de 2018. O governo obstruiu qualquer investigação relativa a estas e outras mortes.

Desde dezembro de 2018, pelo menos 3.144 organizações da sociedade civil foram fechadas, e praticamente todas as organizações independentes de mídia e de direitos humanos operam a partir do exterior.

Para os peritos, a situação continua a piorar. Em fevereiro de 2023, as autoridades nicaraguenses privaram 222 indivíduos de vários perfis de sua nacionalidade e os expulsaram do país, acusando-os de serem "traidores à pátria". No mesmo mês, o Tribunal de Apelações de Manágua declarou outras 94 pessoas residentes na Nicarágua e no exterior traidores à pátria e decidiu impor a perda da nacionalidade e ordenar o confisco de seus bens em favor do Estado.


Silêncio incômodo

De acordo com famílias de vítimas e ativistas da Nicarágua, além de governos estrangeiros, o posicionamento do Brasil causou um incômodo.

Uma voz que se levantou pedindo ação do Brasil é de Bianca Jagger. Em entrevista exclusiva ao UOL na semana passada, a ativista social e política nascida na Nicarágua fez um apelo para que Lula se pronuncie durante da repressão instaurada no país e defenda a democracia.

Para os ativistas, está na hora de o Brasil se posicionar. "Eu conheci o presidente Lula há muitos anos", relatou Bianca Jagger. "Trabalhei com as causas dos povos indígenas, entre eles o bloco yanomami, guarani e outros", disse. Bianca foi casada com Mick Jagger, dos Rolling Stones. Há vários anos ela milita pela democracia em seu país e agora quer uma atitude mais ativa por parte do governo brasileiro.

"Por isso, quero fazer um chamado ao presidente Lula: que por favor se pronuncie de uma forma clara e contundente em apoio a povo da Nicarágua, aos prisioneiros políticos, como o bispo Rolando José Alvarez", afirmou.

"Não se esqueçam: nós precisamos do Brasil. O país precisa assumir um papel importantíssimo em relação aos nicaraguenses", disse a ativista. "Estou confiante de que ele vai fazer isso e quero ir logo ao Brasil", completou.

Brasil quer esgotar diálogo antes de ampliar pressão

O UOL apurou que o governo brasileiro, porém, ainda quer explorar canais de diálogo com o regime de Daniel Ortega, na Nicarágua, enquanto aumenta a pressão internacional para que medidas sejam impostas contra o governo centro-americano por abusos de direitos humanos e violações.

Entre diferentes governos ocidentais, a orientação é de pressionar para que a crise nicaraguense ganhe um outro status dentro da ONU. Até agora, a decisão era de incluir o debate sobre o país dentro dos itens relacionados à cooperação. A meta era de não criar um constrangimento maior sobre Ortega e, portanto, permitir que ele ouvisse as recomendações dos especialistas internacionais em direitos humanos.

Mas nada disso ocorreu e, para muitos países da região latino-americana e para o Grupo Ocidental, está na hora de retirar a Nicarágua do capítulo de cooperação e colocar o país na agenda internacional de violadores de direitos humanos.

Na diplomacia brasileira, porém, a preferência é para que o país continue sendo tratado no capítulo da agenda que lida com a cooperação entre estados e o sistema da ONU. O governo Lula teme que, se colocado sob uma pressão ainda maior, Ortega amplie a repressão.