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Jamil Chade

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O caminho de Bagdá e o vaso de Pandora do unilateralismo

Ataque dos EUA ao Iraque: o marine Edward Chin cobre o rosto de estátua de Saddam Hussein com bandeira americana, que foi retirada depois de vaias dos iraquianos, em Bagdá, após a tomada da capital por soldados da coalizão. A US Marine covers the face of Iraqi President Saddam Hussein"s statue with the US flag in Baghdad"s al-Fardous square 09 April 2003. The flag was removed shrtly afterwards and replaced by the old Iraqi flag. US troops moved into the heart of the Iraqi capital meeting little resistance. AFP PHOTO/Ramzi HAIDAR - Ramzi HAIDAR-9.abr.2003/AFP
Ataque dos EUA ao Iraque: o marine Edward Chin cobre o rosto de estátua de Saddam Hussein com bandeira americana, que foi retirada depois de vaias dos iraquianos, em Bagdá, após a tomada da capital por soldados da coalizão. A US Marine covers the face of Iraqi President Saddam Hussein's statue with the US flag in Baghdad's al-Fardous square 09 April 2003. The flag was removed shrtly afterwards and replaced by the old Iraqi flag. US troops moved into the heart of the Iraqi capital meeting little resistance. AFP PHOTO/Ramzi HAIDAR Imagem: Ramzi HAIDAR-9.abr.2003/AFP

Por Monica Herz e Giancarlo Summa

20/03/2023 12h49

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A mídia do mundo inteiro lembrou há menos de um mês, em 24 de fevereiro, o primeiro aniversário da invasão da Ucrânia pela Rússia. É impossível subestimar o impacto, presente e futuro, da injustificável agressão russa, que colocou de novo a guerra de conquista, de anexação territorial, entre os instrumentos possíveis da política externa das grandes potências - algo que parecia relegado aos livros de história desde a assinatura da Carta da Organização das Nações Unidas, em 1945.

Estamos diante de uma crise profunda dos instrumentos de regulação das relações internacionais que, embora limitadas e criticáveis, criaram normas de convivência que tem moldado todos os âmbitos de nossas vidas, desde aspectos aparentemente técnicos (como a coordenação do transporte aéreo ou as campanhas globais de vacinação) até os mais políticos. O sistema multilateral, criado pelos Estados Unidos e as demais "Nações Unidas" que derrotaram o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial, foi crucial para diminuir gradativamente o uso da violência, o número de conflitos e de vítimas, e evitar o uso de armas de destruição em massa (nucleares, químicas e bacteriológicas).

Este processo, no entanto, vem se revertendo aceleradamente nos últimos dez anos. Até acordos mínimos entre as grandes potências se tornaram cada vez mais difíceis. A invasão russa faz parte de um contexto de deterioração das relações internacionais em que as ações unilaterais vão se acumulando.

Algumas efemérides podem ajudar a colocar este conflito em perspectiva histórica, e nos ajudar a entender como e por que chegamos a este ponto de inflexão.

Exatamente 20 anos atrás, em 20 de março de 2003, uma coalizão militar dirigida pelos Estados Unidos atacou o Iraque, com o objetivo de depor o ditador Saddam Hussein, destruir o exército iraquiano, e colocar no poder um governo aliado. O pretexto para a invasão foi a suposta presença de "armas de destruição de massa" (nucleares ou bacteriológicas) no Iraque, com as quais o regime de Saddam Hussein poderia ameaçar o Ocidente. Era uma mentira sem qualquer fundamento, que a administração neocon do então presidente George W. Bush propagou sem escrúpulos às chancelarias e à mídia do mundo inteiro - as fake news e a desinformação não são exclusividade das redes sociais, que à época nem existiam. Além dos EUA, no momento da invasão e nos anos sucessivos, enviaram tropas para o Iraque 40 diferentes nações: o maior contingente foi o da Grã-Bretanha, com 46 mil soldados, e o menor, o da Islândia, com apenas 2 homens. Entre outros países ex-integrantes da antiga área de influência da União Soviética, a Ucrânia enviou 1,650 soldados.

Segundo a Carta das Nações Unidas, os países membros (hoje são 193) só podem usar a força em autodefesa, ou quando tiverem obtido a autorização da maioria qualificada do Conselho de Segurança, ou seja, pelo menos nove votos favoráveis entre os quinze integrantes do Conselho. Estes são cinco membros permanentes, com direito de veto (os assim chamados P-5: Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Rússia e China), e dez membros não-permanentes, eleitoscom mandato de dois anos.

Ao conseguir somente quatro votos, Bush e o então primeiro-ministro inglês Tony Blair decidiram ir em frente sem o respaldo da ONU, e invadir o Iraque ao arrepio do direito internacional. Por isso, como afirmou o então Secretário-geral da ONU, Kofi Annan, a invasão do Iraque foi ilegítima e ilegal - uma declaração que lhe custou caro: a grande mídia anglo-americana, após ter engolido sem hesitar as mentiras sobre as armas de Saddam, se lançou numa campanha de destruição da reputação de Annan, acusando-o, sem provas ou fundamento, de ter coberto um grande esquema de corrupção na chamada operação "Oil for food".

A invasão do Iraque foi bem-sucedida no plano militar imediato, com a deposição de Saddam Hussein e a aniquilação do exército iraquiano, mas terminou numa catástrofe política e humanitária. A ONU, chamada às pressas para tentar catar os cacos da destruição das estruturas do estado iraquiano, pagou um preço alto. Um atentado em Bagdá, em 19 de agosto 2003, custou a vida a 22 funcionários da Organização; entre eles, o chefe da missão da ONU no país, o brasileiro Sergio Vieira de Mello. Até hoje, o Iraque continua afundado no caos e na instabilidade. Incapazes de resolver os problemas criados, as tropas da coalizão foram se retirando pouco a pouco. As últimas unidades dos Estados Unidos cessaram todas as operações de combate em dezembro 2021. Quatro meses antes, as tropas dos EUA tinham deixado às pressas também o Afeganistão.

A operação "Iraqi Freedom" não foi a primeira nem a última vez que os Estados Unidos e seus aliados decidiram usar a força de forma unilateral após o fim da Guerra Fria. Em 24 março 1999, outra efeméride a ser lembrada, a aliança militar OTAN, liderara pelos EUA (o presidente à época era o democrata Bill Clinton), iniciou bombardeios aéreos contra as forças armadas do que ainda sobrava da República Federal da Iugoslávia (ou seja, à época, Sérvia e Montenegro), que estavam combatendo contra a guerrilha que almejava a separação da província do Kosovo para se juntar à vizinha Albânia - um cenário não tão diferente do que aconteceria 15 anos depois, em março 2014, quando separatistas filo-russos declararam a independência do Dombas, no Sudeste da Ucrânia, e o exército ucraniano iniciou operações militares para reconquistar o território perdido.

No caso do Kosovo, os Estados Unidos e os aliados da OTAN agiram sem a autorização do Conselho de Segurança da ONU (que teria sido sem dúvida bloqueada por um veto russo) e justificaram os bombardeios como uma "guerra humanitária" para proteger a população civil do Kosovo da persecução das tropas servias - de fato, milhares de civis de etnias albaneses tinham sido expulsos de suas casas, e havia registros de execuções e estupros de massa. Sob as bombas "humanitárias", no entanto, ficaram também centenas de civis sérvios e de refugiados kosovares. Num dos bombardeios, os caças da OTAN atingiram, voluntariamente, a redação da Radio Televisão da Servia (RTS) em Belgrado, matando 23 entre jornalistas e técnicos. A OTAN explicou que a emissora "estava dando uma importante contribuição à guerra de propaganda [...]contra a população de Kosovo". O Brookings Institute, um dos mais influentes think-tanks dos Estados Unidos, chegou a teorizar que a OTAN podia usar a força sem a aprovação da ONU, "se seus membros assim o desejassem, para enfrentar crises ou ameaças que não afetam diretamente o território aliado".

Avanço rápido para mais uma efeméride e uma frente de batalha. 19 março de 2011, Líbia. Naquele dia, os caças da OTAN e navios de guerra norte americanos e ingleses despejaram centenas de mísseis e bombas contra as tropas de Muammar Gaddafi, para tentar proteger milhares de civis que, em Benghazi, pela primeira vez tinham ousado sair as ruas contra o regime, e vinham sendo massacrados.

Neste caso, a intervenção fora sacramentada pelo Conselho de Segurança, que em 17 março 2011 aprovou uma resolução demandando um cessar-fogo imediato e autorizando a comunidade internacional a utilizar todos os meios necessários, menos uma ocupação militar, para proteger os civis. EUA, Grã-Bretanha, França e sete membros não permanentes Conselho votaram a favor da resolução número 1973; China e Rússia se abstiveram, juntos com três membros não permanentes: Alemanha, Índia e Brasil. A intervenção humanitária, no entanto, se transformou em poucos dias numa ofensiva aérea da OTAN contra o governo líbio, enquanto no terreno explodia uma guerra civil. Gaddafi foi executado no final de outubro 2011 e o país afundou no caos, de onde até agora não saiu. A Líbia tornou-se porto seguro para movimentos fundamentalistas e grupos criminosos de todos os tipos, enquanto o governo é disputado por grupos armados apoiados por diferentes potências estrangeiras.

Para China e Rússia, no entanto, a lição foi outra. As intervenções humanitárias, eles concluíram, não passavam de uma fachada para justificar mudanças de regime impostas pelas armas, visando eliminar governos que os Estados Unidos e a OTAN consideravam indesejáveis. No caso da guerra civil na Síria - que também começou em março 2011 - Rússia e China vetaram conjuntamente dez projetos de resoluções, e a Rússia vetou independentemente outras sete, protegendo sistematicamente de medidas internacionais de responsabilização o regime de Bashar al-Assad, um aliado chave para Moscou (desde 1971, a marinha russa mantém no porto de Tartus, no nordeste da Síria, sua única base no Mar Mediterrâneo).

Finalmente, as últimas efemérides. Entre 27 fevereiro e 16 março 2014, com uma ação militar rápida e sem qualquer reação internacional mais enérgica, a Rússia anexou de forma unilateral a Crimeia, que havia sido parte da Ucrânia desde 1954. Possivelmente, o governo autocrático de Vladimir Putin imaginou que, sete anos depois, a anexação do Donbas ocorresse da mesma maneira, relativamente indolor.

Invasões para conquista territorial e intervenções "humanitárias" não são equivalentes, é claro, mas o uso da força de forma unilateral reabriu um vaso de Pandora que havia sido, mal ou bem, tampado por décadas. Os Estados passaram a colocar suas máquinas militares a produzir dor e morte a partir de decisões tomadas em suas capitais, a partir de cálculos políticos mais ou menos míopes, sem referência às instituições multilaterais e negociações prévias que esgotass em todas as possíveis soluções diplomáticas. Desta forma, as interpretações das crises tendem a se retroalimentar a partir da retórica nacionalista ou soberanista de cada lado envolvido, com narrativas que não conversam entre si e dificultam a mediação necessária para chegar a algum tipo de ajuste ou compromisso entre as partes - algo indispensável, já que a esmagadora maioria dos conflitos termina por um acordo de paz e não pela rendição de um dos contendentes. O comportamento das grandes potências nucleares, além do mais, se reflete também nas atitudes e ações de Estados menores que - da Etiópia à Nicarágua, de Myanmar a Israel - não hesitam a usar as armas contra países vizinhos ou sua própria população, confiantes da impunidade garantida pela força e/ou pela proteção política oferecida por um dos países P-5.

As instituições multilaterais têm carências inegáveis, como a falta de representatividade do Conselho de Segurança da ONU ou a desigualdade do regime de não proliferação nuclear, mas o caminho que vislumbramos hoje em direção ao uso cada vez mais generalizado da violência, é assustador. Até se encontrando fisicamente longe dos combates, para os países em desenvolvimento ou de renda média, como o Brasil, esta involução representa um fardo econômico adicional, como ficou claro com a guerra na Ucrânia, que agravou a recessão mundial, fez diminuir os estoques globais de grãos, e afetou o comercio internacional.

O unilateralismo mata. É tempo de reconstruir um sistema multilateral mais justo e adequado ao século XXI.

* Monica Herz é professora titular do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

* Giancarlo Summa foi diretor de comunicação da ONU no Brasil, México e África Ocidental; atualmente, é pesquisador na École des Hautes Études en Sciences Sociale em Paris (EHESS).

Herz e Summa estão entre os fundadores do observatório MUDRAL - Multilateralismo e Direita Radical na América Latina.