Topo

Jamil Chade

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Atitude da Europa abre 1ª crise diplomática com governo Lula

O presidente Lula, durante reunião bilateral com o chanceler da República Federal da Alemanha, Olaf Scholz - FáTIMA MEIRA/ESTADÃO CONTEÚDO
O presidente Lula, durante reunião bilateral com o chanceler da República Federal da Alemanha, Olaf Scholz Imagem: FáTIMA MEIRA/ESTADÃO CONTEÚDO

De Pequim

25/03/2023 11h31Atualizada em 25/03/2023 20h03

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva vive sua primeira crise diplomática com os europeus, depois que Bruxelas apresentou uma proposta de acordo considerada como inadequada ao Mercosul.

O novo acordo ambiental proposto pela Europa exige que o Brasil se comprometa a deter e reverter o desmatamento, além de cobrar medidas sociais e de direitos humanos. Essas seriam as condições para que o bloco europeu aceite um acordo comercial com o Mercosul. O pacto estava sendo negociado a portas fechadas entre os dois blocos, como parte de um acordo comercial que o presidente Lula espera fechar até meados do ano.

O mal-estar é o primeiro golpe duro contra os objetivos da nova política externa brasileira de abrir um novo capítulo na relação com os europeus, depois de quatro anos de atritos entre Jair Bolsonaro e as capitais da UE.

Com pneumonia, o presidente Lula cancelou sua viagem à China, depois de reavaliação médica. Toda a agenda política e parlamentar no país foi cancelada.

A origem

A aproximação entre a Europa e o Mercosul começou em 1999, quando o processo negociador foi lançado para fechar um acordo de livre comércio entre os dois blocos. Em 2019, depois de 20 anos, o governo de Jair Bolsonaro fechou o entendimento com a UE.

Mas governos europeus resistiram, insistindo que não poderiam aceitar um acordo comercial com um país que não se comprometesse com a questão ambiental. Por quatro anos, portanto, o processo ficou congelado.

Por pressão da sociedade civil europeia, porém, Bruxelas iniciou as conversas para criar um protocolo adicional ao acordo comercial, na esperança de que tais critérios fossem suficientes para acalmar ambientalistas.

No início de março, os europeus apresentaram o pacote ao Mercosul, numa reunião em Buenos Aires e tendo em vista o compromisso de Lula na questão climática.

Sigilo desrespeitado

No Palácio do Planalto, não foi apenas o conteúdo do texto do acordo ambiental que foi considerado como decepcionante. Os europeus tinham pedido sigilo completo nas negociações. Mas, dias depois, o texto foi publicado por ambientalistas europeus, com queixas de que as exigências colocadas sobre o Brasil eram insuficientes.

A atitude e o texto criaram um mal-estar inédito na relação entre o novo governo Lula e os europeus. A ideia era a de negociar em boa-fé, diz a chancelaria. Mas o vazamento escancarou, segundo Brasília, uma atitude considerada como "complicada" por parte dos europeus.

Exigências ao governo Lula

Também pesou o conteúdo da proposta e das exigências ambientais. Um dos principais problemas seria transformar o que são compromissos voluntários do Brasil sobre o clima em obrigações vinculantes.

Internamente, o governo Lula acredita que, se os europeus querem cooperação com o meio ambiente, não precisam fazer exigências. Eles podem recorrer ao Fundo da Amazônia e investir para ajudar o país a reduzir o desmatamento.

Para o governo Lula, trata-se de uma negociação comercial que já concluída e que tal protocolo extra não poderia ser apresentado como uma carta de adesão.

Também gerou muita irritação o fato de a Europa estar fazendo essas exigências ao governo Lula, que já se comprometeu em reduzir o desmatamento e reverter o desmonte das políticas ambientais de Jair Bolsonaro.

Em Brasília, o governo é claro: as negociações para que haja um acordo precisam ocorrer em outra base. "Nesses termos não dá", afirmou um experiente embaixador.

Internamente, a conclusão que se tira no governo brasileiro é de que tal postura dos europeus apenas reforça a tese de que se trata de bloco protecionista e que não aceitará a abertura de seu mercado aos produtos agrícolas brasileiros.

O acordo comercial, de fato, é considerado como modesto e que não ameaçaria os principais setores agrícolas da Europa. Nem assim, porém, há uma vontade política em se fechar o acordo.

O Brasil ainda lembra que outros protocolos adicionais a acordos comerciais já foram feitos pela UE com países estrangeiros, e não apresentavam exigências parecidas. Um exemplo foi o protocolo assinado com o Canadá, considerado como muito menos exigente que o tratado proposto ao Mercosul.

A postura de irritação com os europeus não vem apenas do Brasil. Os demais países do Mercosul já conversaram após o vazamento do texto e estão coesos nas críticas aos europeus.

Em recente entrevista à agência EFE, o chanceler Mauro Vieira sinalizou sua insatisfação, indicando que o que está sobre a mesa é um acordo de associação, e não um "ultimato sobre o que devemos ou não fazer internamente no Mercosul". Ele ainda criticou a ênfase em "medidas unilaterais" e questionamentos sobre a qualidade sanitária dos produtos brasileiros.

China amplia presença, Europeus vivem estagnação

O mal-estar ainda acontece pouco tempo antes da chegada da presidente da Comissão Europeia, Ursula van der Leyen, em sua primeira visita ao Brasil. A viagem está marcada para ocorrer no dia 12 de abril.

A crise ainda coincide com a viagem do presidente brasileiro para fechar acordos com a China, ampliando o papel do país asiático na economia nacional. Documentos internos do Parlamento Europeu chegam até mesmo a concluir que o bloco corre o risco de perder ainda mais espaço para os asiáticos na América do Sul, enquanto não aceitar fechar o acordo comercial entre UE e Mercosul.


O que os europeus querem?

Pelo novo pacto, os países teriam de assumir uma série de compromissos ambientais, de biodiversidade e sobre direitos humanos. Uma das novidades foi a proposta de uma nova meta de desmatamento provisória para ser cumprida até 2025.

Segundo o texto, os dois lados se comprometem a "deter e reverter a perda de florestas e a degradação da terra até 2030, ao mesmo tempo em que proporciona desenvolvimento sustentável e promove uma transformação rural inclusiva".

"Para este fim, a UE e o Mercosul estabelecerão uma meta provisória de redução do desmatamento de pelo menos 50% em relação aos níveis atuais até 2025", disse.

"Além disso, os dois lados estão comprometidos até 2025 a fazer progressos significativos na restauração das florestas, maximizando as contribuições para a conservação da biodiversidade, os objetivos da mudança climática e outros co-benefícios, tais como os incluídos nas estratégias e políticas nacionais relevantes, os respectivos compromissos ou iniciativas internacionais como o Desafio de Bonn ou a iniciativa global do G20 sobre restauração de terras", aponta o texto.

O pacote ainda aponta que "UE e o Mercosul reconhecem que as florestas têm um papel fundamental a desempenhar na mitigação e adaptação à mudança climática, bem como na conservação e uso sustentável da diversidade biológica".

"Portanto, os dois lados monitorarão o estado e a extensão das florestas para que seu papel como sumidouros ou como fontes de emissão de gases de efeito estufa e fornecedores de serviços ecossistêmicos possa ser melhor compreendido e para que sejam tomadas medidas", diz.

Ambientalistas ficam decepcionados e pedem fim de acordo

Para ambientalistas, o acordo é decepcionante e não cria exigências suficientes para impedir que o comércio seja suspenso caso haja um maior desmatamento.

Para o Greenpeace Áustria, as violações das regulamentações ambientais ainda não foram sancionadas com base na proposta. Para a entidade ambientalistas, tal projeto não pode ser aprovado e pede que governos europeus "coloquem um fim definitivo" na negociação.
Segundo eles, o protocolo apenas garante uma "camada verde de tinta ao acordo comercial prejudicial ao meio ambiente",

"As florestas da América do Sul, como a Amazônia ou o Gran Chaco, não são protegidas pela declaração adicional", diz Melanie Ebner, porta-voz agrícola do Greenpeace na Áustria.

Para a entidade, o acordo comercial "impulsionaria maciçamente o comércio de produtos prejudiciais ao meio ambiente".

"De acordo com um estudo encomendado pelo governo francês, importações adicionais de carne bovina na região do Mercosul, por exemplo, levariam a um desmatamento adicional de 700.000 hectares", dizem.

Carlos Rittle, especialista em política internacional na Rainforest Foundation, indica que a nova meta é 47% maior do que a meta de 2020, que é uma obrigação legal do Brasil. Neste caso, com 5 anos de atraso. Para o brasileiro, criar uma meta que é contrária às obrigações legais do país gera um precedente perigoso.

O que mais estabelece a proposta da Europa?

  • Os países admitem que 90% do desmatamento no mundo ocorre por conta da expansão agrícola.
  • Governos se comprometem a não reduzir padrões trabalhistas e ambientais para atrair investimentos.
  • Países aceitam combater exploração ilegal de madeira.
  • A UE e o Mercosul cooperarão em medidas para assegurar que os produtos que os cidadãos consomem não contribuam para o desmatamento e a degradação das florestas.
  • Ambas as partes reconhecem a importância de tomar medidas para eliminar fontes de incêndios florestais em áreas florestais ou próximas, para reduzir ainda mais o desmatamento e a degradação das florestas.
  • A participação pública no processo decisório ambiental e o acesso à justiça em questões ambientais e sua revisão regular são cruciais para a implementação da política ambiental, inclusive para garantir que os fatores que levam ao desmatamento sejam devidamente abordados.
  • Cooperar em cadeias de fornecimento sustentáveis, incluindo cadeias de fornecimento de produtos não ligados ao desmatamento.
  • O compromisso de respeitar, promover e implementar efetivamente as normas fundamentais do trabalho da OIT é obrigatório tanto para a UE quanto para o Mercosul. Na implementação desses compromissos, a UE e o Mercosul pretendem colocar um foco específico na erradicação do trabalho infantil, bem como na liberdade de associação e no reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva.
  • Apoio ao papel das comunidades indígenas e locais na proteção das florestas;