Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
"Google conhece você melhor que sua mãe"
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Certa vez, em Londres, Julian Assange me recebeu na embaixada do Equador, onde ele fugia da polícia. Num papo longo, ele insistia que as redes sociais poderiam ser chamadas de "o maior roubo da história". E com a nossa cumplicidade.
"Google, essencialmente, sabe o que você estava pensando", me dizia. "E sabe também (o que vc pensou) no passado. Quando você tem algum pensando sobre algo, quer saber algum detalhe, você busca no Google. Sites que tem Google Adds, que na verdade são todos os sites, registram sua visita", explicou.
"Portanto, Google sabe todos os sites que você visitou, tudo o que você buscou, se você usou gmail ou email. Então ele te conhece melhor que você mesmo", sentenciou.
"Um exemplo: você sabe o que você buscou há dois dias, há três meses? Não. Mas o Google sabe. Google conhece você melhor que sua mãe", ironizou.
Naquele momento, achei um exagero a análise do excêntrico australiano. Hoje, tenho a plena consciência de que quem estava errado era eu.
Existe sim um confisco sistemático de todos nossos dados, de nossa privacidade e, talvez, de nossos destinos. Para as redes que nos dão a impressão de serem virtuais, contamos quantos filhos temos, o que compramos, quem admiramos, quem são nossos amantes e entregamos as mentiras para proteger um segredo. Postamos nossas alegrias e nossas tristezas.
No fundo, as plataformas sabem onde eu sugeri um encontro entre a minha casa e a da pessoa pela qual me apaixonei. Sabem o que pensei num 3 de maio de 2021, numa madrugada de insônia, no dia do nascimento do meu primeiro filho ou em qualquer outra data.
Está armazenado no sistema quais palavras eu coloquei num buscador e, portanto, o que eu estava pensando. Nenhum regime totalitário, com sua ampla rede de espiões e tentativa de controle, jamais sonhou ter em suas mãos tal poder sobre sua população.
Como diria Assange: "o sistema nervoso central da sociedade".
Mas essa não é apenas uma história do confisco de nossos dados, transformado em fortunas inimagináveis. Há, no fundo, uma batalha por nossas consciências. Na verdade, uma guerra total.
Se eu posso saber cada uma das preferências daquela pessoa, nada me impede de levá-la a consumir certos produtos. E oferecer exatamente o que ela achou que precisava.
Nada me impede de apresentar àquele potencial consumidor um novo artista, com base nas preferências que eu sei daquele meu cliente.
E nada me impede de, eventualmente, direcionar o debate político ou social para favorecer um certo movimento político. Eu posso ensinar o ódio, o nojo e o desprezo. Eu posso erguer um mito.
O voto consciente, portanto, estaria ameaçado por um sistema capaz de criar uma realidade paralela e deslocada.
No século 21, nossas consciências estão no centro do debate. Mas, aqui, retomo o questionamento do historiador Yuval Noah Harari. Sem o controle sobre nossas decisões, o sistema democrático entraria em colapso? Qual legitimidade do voto se minha escolha não é mais minha?
Eles saberão de nosso futuro antes de nós mesmos? Mas se eu sei o teu futuro antes de você, eu talvez possa moldar esse teu destino, sempre deixando que você acredite que foram tuas as decisões.
Na Primavera Árabe, um cartunista amigo meu, Patrick Chappatte, rabiscou algo que revelava muito daquele momento e do otimismo que tínhamos sobre as redes sociais. Ele desenhou um encontro fictício entre Hosni Mubarak e outros ditadores da região. Pela janela do local onde os líderes autoritários conversavam, podia-se ver uma multidão que pedia democracia. E um deles questionava aos demais: quantos inimigos vocês têm hoje no Facebook?
Sim, era ainda um momento de esperança das redes sociais. Hoje, sem controle, são essas mesmas plataformas que podem cancelar a democracia. O pacto foi desfeito?
Anos depois de eu me encontrar com Assange, o ex-juiz espanhol Baltasar Garzón me relatou como membros do grupo Wikileaks de Julian Assange tiveram todos seus emails entregues à Justiça americana, sem que tivessem sido informados da medida por meses.
Perguntei quem agiu assim. E a resposta: as próprias plataformas.
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