Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Carta às mães haitianas: o mundo vive um apartheid real
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Esta é a versão online da newsletter do Jamil Chade enviada ontem (13). Na newsletter completa, apenas para assinantes, o colunista fala sobre como a arrecadação de dinheiro para financiamento de países em crise humanitárias é desigual —a Ucrânia concentrou em quatro meses deste ano investimentos que superam todo o dinheiro arrecadado para a América Latina. Quer receber antes o pacote completo, com a coluna principal e mais informações, no seu email, na semana que vem? Clique aqui e se cadastre.
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Prezadas mães haitianas,
Nesta semana, tive calafrios quando li um informe da ONU mostrando com detalhes como suas filhas e filhos estão sendo queimados vivos, como estupros coletivos se multiplicam, como a violência fechou centenas de escolas, impediu o atendimento de saúde e, mais uma vez, adiou o futuro. Apenas no mês de abril, foram mais de 600 assassinatos no Haiti.
Mas o verdadeiro choque foi quando eu disparei ligações a missões diplomáticas de diversos países para tentar entender onde estava o pedido que o governo do Haiti havia feito em outubro por ajuda internacional. A solicitação, me disseram, estava estagnada diante da recusa dos países ricos em enviar seus soldados para a região. Um desses embaixadores me disse: "o Haiti não tem solução".
O abandono, porém, não é apenas militar. Para a crise humanitária que abala o país, a ONU pediu 718 milhões de dólares para sair ao socorro da população local. Estamos quase na metade do ano e a entidade apenas recebeu de doadores 11% do valor solicitado. Em educação, foram solicitados 50 milhões de dólares. Mas o país não recebeu um centavo sequer. Para assegurar água potável, saneamento e higiene, o plano recebeu apenas 2,5% do necessários.
O maior cheque seria para garantir alimentos.
Dos 400 milhões de dólares que a ONU precisava para isso, ela recebeu escandalosos 1,2% do valor. Em cinco meses, a Ucrânia já recebeu em ajuda humanitária mais que todo o recursos que o Haiti precisaria para o ano de 2023.
Escrevo a vocês com a triste constatação de que sua crise é ignorada pelo mundo. Sequer encontra espaço para a capa dos jornais. Não mobiliza recursos e nem tropas. Escrevo para lhes dizer que a morte de seus filhos é o espelho da hipocrisia das nações supostamente civilizadas. Em cada assassinato está o atestado de óbito de políticas externas que, no papel, se apresentam como bússolas da democracia e dos direitos humanos.
Neste domingo em que famílias se reúnem para celebrar vocês, mães, deixo aqui minha solidariedade e indignação.
Em muitos aspectos, o mundo vive um apartheid real. Silencioso? Apenas para os surdos. Ou, como diria Nelson Rodrigues, o pior cego é aquele que não quer ver. E o mundo opta por não querer ver o déficit de humanidade em zonas que, se estão no mapa, parecem ter desaparecido da consciência coletiva.
O Haiti das filhas e filhos de vocês é um desses locais. Não há fatalidade. Certamente a disputa doméstica por poder, a corrupção, terremotos, furacões e o colapso do estado contribuíram para a condição do país. Mas uma recente reportagem do jornal The New York Times revelou o que historiadores e a população local já sabem há anos: a comunidade internacional fez o Haiti de refém, com perdas que podem somar oito vezes seu próprio PIB atual.
O pagamento do resgate pela revolução de 1791 transformou o que era uma das colônias mais rentáveis do mundo em uma dívida impagável. Assim relata o New York Times:
Por gerações após a independência, os haitianos foram forçados a pagar os descendentes de seus antigos senhores de escravos, incluindo a imperatriz do Brasil, o genro do imperador russo Nicolau I, o último chanceler imperial da Alemanha e Gaston de Galliffet, o general francês conhecido como o "açougueiro da Comuna" por esmagar uma insurreição em Paris em 1871.
Os encargos continuaram até o século XX. A riqueza que os ancestrais da Sra. Present extraíram do solo trouxe grandes lucros para um banco francês que ajudou a financiar a Torre Eiffel, o Crédit Industriel et Commercial, e seus investidores. Eles controlaram o tesouro do Haiti de Paris por décadas, e o banco acabou se tornando parte de um dos maiores conglomerados financeiros da Europa.
As riquezas do Haiti também atraíram Wall Street, proporcionando grandes margens de lucro para a instituição que acabou se tornando o Citigroup. Isso afastou os franceses e ajudou a estimular a invasão americana do Haiti - uma das mais longas ocupações militares da história dos Estados Unidos"
Hoje, quando escuto que "o Haiti não tem solução", a realidade é que há quem queira fazer vingar a narrativa de que seus filhos nasceram em uma latitude que determina seu destino. Uma cômoda e mentirosa forma de abafar a história, seus lucros e suas responsabilidades.
Diante de mães que testemunham seus filhos perambulando pelas fronteiras do continente para sobreviver, resgato como Aimé Césaire certa vez escreveu que a "negritude no Haiti se levantou pela primeira vez e disse que acreditava em sua humanidade".
Hoje, ao ser abandonado, o país não testa a existência da humanidade de suas mães e cidadãos. Mas o da própria comunidade internacional.
Saudações democráticas,
Jamil
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