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Jamil Chade

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carta aos intolerantes: seus muros só refletem seus medos

1989 - Queda do Muro de Berlim - Reprodução/Comune di Nole
1989 - Queda do Muro de Berlim Imagem: Reprodução/Comune di Nole

Colunista do UOL

09/07/2023 04h00Atualizada em 10/07/2023 18h04

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Nunca tantos muros foram construídos como no século 21.

Senhores,

Nunca estivemos tão conectados como hoje. Nunca foi tão barato falar com o amor de sua vida, que vive do outro lado das montanhas. Nunca foi tão fácil e, ao mesmo tempo, superficial viajar.

Mas escrevo essa carta com uma constatação: nunca construímos tantos muros como nos últimos 20 anos.

Ao final da Segunda Guerra Mundial, existiam sete muros em fronteiras nacionais. Ao final da Guerra Fria, em 1989, existiam 15. Em 2019, existiam 77 muros.

Desde 2000, construímos mais quilômetros de muros que em qualquer outro momento da história. Foram 26 mil km.

Em 2017, um levantamento revelou que existiam 65 outros muros em construção ou sendo planejados. Se concluídos, eles levariam o mundo a contar com mais 40 mil km de muros. Suficiente para dar a volta na terra.

Muros são certamente obras físicas. Mudam paisagens. Fazem sombra onde não existia.

Mas seu poder não vem nem das pedras colocadas umas sobre as outras, e nem dos cartazes com avisos aterrorizantes do que ocorreria se alguém ousasse saltá-los.

O poder do muro é outro. Ele ergue e legitima uma nova realidade mental.

Num momento marcado pelas incertezas, dúvidas, guerras, pandemias, desinformação e transformações tecnológicas, o muro cumpre a mitologia de uma suposta estabilidade.

Massivo, firme e permanente aos iludidos, silencioso aos surdos. Impossível de ser deslocado ou flexibilizado aos cartesianos.

É a vitória da engenharia e suas certezas matemáticas contra os fluxos da vida humana.

Ao cruzar dezenas de fronteiras ao longo dos últimos 20 anos, eu cheguei à constatação de que muros não são construídos para garantir segurança. São atos populistas, em grande parte bradados por charlatães e vendedores de ilusão.

Muros revelam o estado psíquico de uma sociedade. Se oficialmente são erguidos contra bárbaros, imigrantes, terroristas, drogas e armas, o que eu reparei é que são, acima de tudo, construídos contra o medo, contra ansiedades e contra o diferente.

O objeto central dos muros não está fora deles. Está dentro. É ali que parece estar a sombra.

Percorrer a Europa é percorrer as ruínas e o que sobrou de muros erguidos ao longo da história. Alguns são até patrimônio da Humanidade, protegidos pela Unesco. Um muro protegido por uma entidade que representa a burocratização da utopia. Haja incoerência.

Eu mesmo vivo ao lado de um muro medieval. E sempre que passo por ele, tento andar leve, reduzir o passo para escutar o que ele tem para contar. Se escutarmos bem, há, no fundo, algo fascinante sobre uma contradição que esses muros trazem em si mesmos.

De um lado, eles escondem quem está supostamente protegido por suas pedras.

Mas, quanto mais altos, mais eles desnudam e mostram, naquelas sombras, os medos mais secretos daquela sociedade. O muro é, essencialmente, um reconhecimento das nossas vulnerabilidades, incoerências e injustiças.

Existem muitos motivos para se construir um muro. Há muros para impedir a entrada de seres humanos em busca de liberdade. Outros, para não deixar que a população daquele local saiba que existe liberdade fora.

Existem ainda, entre nós, os muros erguidos contra determinados grupos da sociedade, mesmo quando eles são maioria. Existem ainda os muros contra aqueles que buscam apenas um porto seguro para sobreviver ou ter o direito de sonhar.

Seja qual for seu objetivo, todos eles são feitos do mesmo cimento: a legitimação institucional da diferença.

A sombra que produzem é feita da mesma escuridão: a intolerância.

Antes de ser erguido, o muro acima de tudo é mental.

A construção e destruição de muros sempre estiveram presentes no percurso da Humanidade. Ao percorrer os diferentes muros, tentei sempre conhecer a história daqueles que desafiam a obra de engenharia política.

Parece que quanto maior o muro, mais robusto ou mais impenetrável, maior a coragem daqueles que se propõem a derrubá-lo.

Não nos faltará essa coragem.

Saudações democráticas,

Jamil