Jamil Chade

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Reportagem

Questionada, França usa Jogos como arma para tentar reocupar palco global

Obrigada cada vez mais a dividir as decisões sobre o destino do mundo com novas potências, com suas forças militares questionadas em territórios das ex-colônias e patinando na corrida tecnológica e industrial, a França usou os Jogos Olímpicos como um instrumento de sedução e para tentar mandar uma mensagem de que não faz parte do passado.

Paris, a cidade mais visitada do planeta, não precisava ser reapresentada ao mundo. Mas não era só a atenção de turistas que interessava desta vez. O que estava em jogo era a posição geopolítica da França, num momento crítico para a redefinição do poder na esfera internacional.

Nos últimos anos, as economias emergentes passaram a fazer sombra aos membros do G7, enquanto europeus e americanos descobriram que não teriam mais como ditar, sozinhas, o destino do mundo. A Europa, em especial, passou a viver um debate sobre seu papel no mundo, cada vez mais questionado.

Em 2018, por exemplo, a China superou a zona do Euro e passou a ser o terceiro maior PIB do mundo, naquele momento. Em termos comerciais, o bloco europeu passou a ter a menor participação na economia global nos últimos 50 anos.

Seguindo a transformação dos polos de poder no mundo, os megaeventos também migraram por mais de uma década aos países emergentes, entre eles Rússia, Qatar, China, África do Sul e Brasil.

Agora, depois de uma Olimpíada atípica em Tóquio, por conta da pandemia, sediar o evento de novo na Europa cumpria um objetivo também político e diplomático.

Assim como o Qatar e tantos outros emergentes entenderam o poder do esporte como forma de se projetar ao mundo, a França repetiu a estratégia. Num documento oficial do governo francês, não há dúvidas sobre a motivação política para receber as Olimpíadas.

"A diplomacia esportiva envolve o uso do esporte não apenas como uma ferramenta central na cooperação francesa com os países parceiros, mas também como uma ferramenta de influência e atratividade nacional por meio da organização de grandes eventos esportivos internacionais", afirma o governo.

Além de seus eventos esportivos regulares, como Roland Garros, Tour de France e a Vendée Globe, a ofensiva francesa começou em 2016, com a Eurocopa. Nos anos seguintes, o país sediou o Campeonato Mundial de Handebol Masculino em 2017, a Ryder Cup em 2018, a Copa do Mundo Feminina em 2019, o Campeonato Mundial de Ciclismo de Pista em 2021, o Campeonato Mundial de Esqui Alpino em fevereiro de 2023, o Campeonato Mundial de Atletismo em 2023 e a Copa do Mundo de Rugby em outubro de 2023.

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Aposta em "Jogos da Nova Era"

Paris ainda serviu como trampolim ao próprio COI, depois de um esgotamento de seu modelo de Jogos. Incapaz de ser sustentável financeiramente, o evento começou a sofrer para encontrar cidades que tivessem interesse político ou capacidade orçamentária para bancar a festa.

Se não bastasse, a audiência era cada vez mais velha, o que gerava a preocupação dos patrocinadores de que o evento em si estava perdendo força entre os jovens.

Para 2024, novos eventos foram incluídos, na esperança de atrair um público mais jovem. A paridade entre homens e mulheres foi quase obtida e Paris investiu menos na construção de nova infra-estrutura.

Não por acaso, ao encerrar os Jogos, o presidente do COI Thomas Bach chancelou Paris como a "Olimpíadas da Nova Era".

Essa era também a aposta da França para mandar a mensagem ao mundo de que, na definição das regras do século 21, também quer seu lugar à mesa.

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"Rei Sol" ofuscado por crise interna

O plano era considerado como infalível. Sediar as Olimpíadas, cem anos depois da última edição em Paris, mostraria que o poder não se cede e que os europeus não abririam mão de seu lugar no diretório do mundo. Assim, o presidente Emmanuel Macron se apresentaria como o "Rei Sol", acolhendo líderes de todo o mundo.

O que ninguém previa é que o evento ocorreria durante uma das mais graves crises políticas da França em anos. Com a vitória da extrema direita na eleição europeia, em junho, Macron decidiu dissolver seu parlamento e convocar os franceses às urnas, semanas antes de os Jogos começarem.

O resultado deu a vitória para a esquerda. Mas não garantiu maioria para nenhum partido político, o que abriu um impasse na escolha do novo primeiro-ministro. As Olimpíadas, assim, chegaram sem que a França tivesse um novo governo e diante de uma sociedade profundamente dividida. Longe de um papel de soberano absoluto, Macron passou a conviver com a instabilidade política, enquanto os partidos de esquerda reivindicam o cargo de primeiro-ministro.

Mais de 40 eventos internacionais nos próximos cinco anos

Apesar da crise, o governo francês ainda deixa claro que a tendência de usar o esporte como arma diplomática não perderá força. Nos próximos cinco anos, o pais sediará mais de 40 grandes eventos esportivos internacionais. Um dos destaques é a volta da Olimpíada de Inverno aos Alpes franceses, em 2030.

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Mas também receberá Mundial de Badminton em 2025 e o Campeonato Mundial de Ciclismo e o Campeonato Mundial de Canoagem-Kayak em 2027.

Uma vez mais, o governo não esconde suas intenções. "Esses eventos são oportunidades únicas para a França promover sua visão e experiência em esportes acessíveis, inclusivos e sustentáveis para autoridades estrangeiras, agentes esportivos e o público em geral", disse.

De acordo com o Ministério das Relações Exteriores da França, o legado desses eventos não é apenas para as cidades que os recebem.

"O esporte se tornou uma importante ferramenta de cooperação em nossas relações bilaterais. Sediar os maiores eventos esportivos internacionais na França aumenta o interesse de nossos parceiros em aprofundar as parcerias nessa área, especialmente em relação à orientação e ao apoio ao fortalecimento dos ecossistemas esportivos na África", destaca.

Segundo o governo, a rede diplomática foi acionada para atingir esses objetivos, com um orçamento de mais de 200 milhões de euros para criar mais de cem projetos de cooperação pelo mundo, incluindo o fortalecimento do rúgbi feminino em Benin, um local estratégico para a diplomacia francesa na África.

Também foram criadas academias que combinam esporte e educação para jovens no Senegal, Libéria, Marrocos, Camarões, Mali e África do Sul.

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Por fim, o governo trabalha para garantir que o idioma francês seja usado e promovido durante os eventos esportivos.

Fim da trégua

O evento ainda serviu para que houvesse um adiamento no acirrado debate político doméstico da França. De forma estratégica e cuidadosamente calculada, Macron esteve presente em disputas da medalha de ouro, sempre que um atleta francês era o favorito para vencer. Abraçou, secou lágrimas e tentou surfar na popularidade dos novos heróis franceses.

Mas ninguém ousa apostar numa prolongação desse parêntese esportivo. "A lua de mel não vai durar", reconheceu um diplomata francês. Em 2018, depois da ganhar a Copa do Mundo na Rússia, a França viu o país mergulhar em uma onda de protestos que chegou a abalar o governo de Macron.

Agora, ao apagar a chama olímpica, o presidente sabe que o que lhe espera é um período de turbulência e o fim de uma trégua política no país. Entre políticos e diplomatas, o alerta sobre os próximos meses vem em tom de ironia: "nem a mitologia olímpica sabe dizer o que vai acontecer".

Errata:

o conteúdo foi alterado

  • Uma versão anterior deste texto informava incorretamente que a Copa do Mundo de 2018 aconteceu no Qatar. Na verdade, foi na Rússia. A informação foi corrigida.

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