'EUA estão em decadência', diz promotor da desdolarização no Brics
Reduzir o uso do dólar no comércio não traria riscos econômicos ao Brasil. Mas o impacto poderia ser o de desagradar aos EUA. "Eles (americanos) estão em decadência, mas continuam poderosos e capazes de fazer os seus estragos mundo a fora", afirma Paulo Nogueira Batista Jr., ex-diretor-executivo no FMI e ex-vice-presidente do NBD, o banco do Brics.
Nos últimos meses, ele tem sido um dos nomes consultados pelo Brics e pelo governo brasileiro para tentar traçar um caminho para criar um mecanismo que permita o uso de moedas nacionais no comércio, substituindo em parte o dólar.
Em entrevista ao UOL, o economista examina as ameaças feitas por Donald Trump que, no final de semana, anunciou que não iria tolerar se o bloco de emergentes reduzisse o papel do dólar em seu comércio e em suas contas. O presidente eleito prometeu aplicar tarifas de 100% contra quem seguir esse caminho.
Para o economista brasileiro, a reação de Trump é "compreensível e previsível", já que os EUA perdem um "privilégio exorbitante". Sua avaliação é de que a imposição de tarifas é ilegal. Mas alerta que a OMC "está esvaziada e os seus tribunais de arbitragem estão paralisados". "Enfim, é um vale tudo", disse.
Em 2025, o Brasil assume a presidência do Brics e tem como um dos itens de sua agenda o avanço do debate do uso de moedas locais para as trocas entre as economias do bloco.
Eis os principais trechos da entrevista:
Trump fala em punir quem usar outra moeda. Por qual motivo a preocupação tão grande dos americanos com uma eventual transição para outras moedas? O que eles perdem?
Perdem um privilégio. A reação dos EUA é compreensível e previsível. A hegemonia do dólar como moeda internacional lhes confere um privilégio importante —e exorbitante, como dizia De Gaulle nos anos 60 do século passado. Graças a ele, os EUA podem emitir moeda, a custo praticamente zero, e com isso financiar os seus déficits externos e fiscais. Dessa maneira, eles se apropriam de recursos reais do resto do mundo.
E o Tesouro americano consegue financiar parte dos seus desequilíbrios com emissão de passivos monetários sobre os quais, por definição, não incidem juros.
Nas regras internacionais do comércio, eles podem aplicar tarifas contra quem não usar sua moeda?
Não podem usar tarifas de importação dessa maneira. Mas respeito a regras internacionais nunca foi o forte dos EUA. Menos ainda no passado recente. A OMC está esvaziada, Os seus tribunais de arbitragem estão paralisados. Enfim, é um vale tudo.
Como os americanos têm usado o dólar como um instrumento de poder?
De maneira cada vez mais arbitrária, para punir países pouco cooperativos ou hostis a eles. Por exemplo, congelam ou confiscam reservas oficiais depositadas em dólares. Foi o que ocorreu com a Rússia, em escala sem precedentes, como parte das sanções impostas pela invasão da Ucrânia em 2022. Naturalmente, a confiança no dólar diminuiu muito.
O senhor foi um dos consultores e idealizadores de um projeto de uso de moedas nacionais para o comércio, no Brics. Qual o ganho que os países do bloco teriam?
O uso de moedas nacionais nas transações internacionais é crescente —e não só no Brics. A vantagem é fugir das sanções ocidentais. Além disso, bypassar o dólar [trocar moedas sem passar pelo dólar] reduz custos de transação. Esse é o aspecto da desdolarização que tem avançado mais rapidamente.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberQual o risco de que a hegemonia apenas seja transferida do dólar para o yuan?
Do ponto de vista do Brasil e de outros países, essa transferência de hegemonia seria, em certo sentido, como trocar seis por meia dúzia. Uma outra moeda nacional passaria a desempenhar funções internacionais, o que traria problemas semelhantes aos que experimentamos no sistema atual centrado no dólar. Mas não acredito que esse seja o cenário mais provável.
A China reluta em internacionalizar plenamente a sua moeda. E isso é compreensível. Haveria certos pré-requisitos que a China teria dificuldade de atender. Por exemplo, ela aceitaria dar conversibilidade plena ao renminbi [nome do yuan]? Aceitaria remover os controles de capital que tem aplicado com sucesso? Parece duvidoso. Além disso, o uso mais disseminado da moeda chinesa como moeda internacional acarretaria um aumento na demanda por ela e resultaria, tudo mais constante, em valorização cambial, com potencial prejuízo para as exportações da China e seu dinamismo econômico.
Quais riscos o Brasil corre se reduzir o dólar em seu comércio?
Do ponto de vista econômico, nenhum. Reduziria exposição a sanções secundárias impostas pelos EUA, que dificultam o nosso comércio com países sancionados. Diminuiria custos de transação, ao dispensar a conversão intermediária para o dólar. O risco seria eminentemente político: o de desagradar aos EUA. Eles estão em decadência, mas continuam poderosos e capazes de fazer os seus estragos mundo a fora.
O NBD pode ser a chave de uma transição para um mundo com um papel menor para o dólar?
Há quem pense que sim. Eu tenho minhas dúvidas. Primeiro, o NBD é um banco multilateral de desenvolvimento e não uma instituição monetária. Segundo, ele tem tido dificuldades de cumprir a sua função precípua de financiar em condições atraentes investimentos em infraestrutura e desenvolvimento sustentável. Assim, creio que o banco poderia ter um papel acessório, promovendo estudos sobre o tema e desdolarizando as suas operações ativas e passivas.
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