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Jeferson Tenório

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Machado de Assis é cria da favela, mas sua origem é apagada

Machado de Assis, em 1904 - Arquivo Nacional/ Domínio Público
Machado de Assis, em 1904 Imagem: Arquivo Nacional/ Domínio Público

Colunista do UOL

16/05/2023 15h01

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Machado de Assis é sempre contemporâneo. Desde antes do seu célebre livro Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), o escritor brasileiro já traçava com habilidade um diagnóstico muito preciso do sentimento de nacionalidade. Em obras posteriores, não poderia ser diferente. Há nos seus livros um desfile único de tipos humanos que vão compondo um panorama de um certo espírito cultural brasileiro.

Creio que tal êxito é fruto da observação aguçada de quem atravessou a sociedade. Filho de um pintor de paredes negro e de uma lavadeira, descendente de portugueses, Machado de Assis era negro, neto de negros alforriados, viveu numa sociedade escravocrata e racista, era pobre e nascido no Morro do Livramento. Sim, Machado de Assis é cria da favela.

Certa vez, ainda quando eu era aluno de graduação, escutei de um professor de literatura que os bons escritores nasciam sempre da classe média, por terem mais tempo e condições de pensar e escrever. Como se só uma classe média e branca fosse capaz de produzir autores de alto nível. No entanto, é curioso que justamente um autor que veio do morro, da favela, dentro de um Brasil hostil e escravocrata, tenha trazido inovações e reflexões tão profundas para literatura e para vida.

Ao longo da história da literatura, a origem de Machado foi sendo pasteurizada e embranquecida. Sua imagem foi, aos poucos, sendo associada e incorporada a uma certa elite intelectual que o afastava de suas raízes negras e pobres. Era possível perceber no imaginário das pessoas a figura quase aristocrática de Machado nos livros didáticos anos atrás, por exemplo.

A Flup (Festa Literária das Periferias) homenageou, no último dia 13 de maio, o maior escritor brasileiro. Embora tenha este reconhecimento, a obra de Machado de Assis ainda sofre com injustiças no ambiente escolar. É constantemente acusado de ter uma linguagem difícil, formal e afastada do vocabulário cotidiano. Certamente a linguagem de Machado pode causar estranheza a um leitor jovem, porém, é preciso, antes de mais nada, destacar que a literatura machadiana pode e deve ser lida ainda que a linguagem pareça, num primeiro momento, difícil.

Para isso, é necessário frequentar seus livros, aos poucos, da mesma forma que fazemos ao conhecermos uma pessoa, pois não se conhece o outro com visitas esporádicas, uma ou duas vezes ao ano. Para conhecê-la, é necessário frequentá-la, ouvi-la e depois compreendê-la. O mesmo se aplica ao escritor realista. Ao ganharmos familiaridade com sua literatura temos a surpresa de descobrir o mais assombroso em Machado: que suas histórias sempre se atualizam, isto é, a obra machadiana nunca termina de dizer aquilo que pretendia dizer.

Acho importante que a Flup tenha trazido esta discussão este ano, sobretudo numa data simbólica e controversa como a do 13 de maio, data em que marca a abolição no Brasil, pois não podemos esquecer nossas raízes. Não podemos esquecer de onde viemos como sociedade. Não se pode esquecer que, de dentro de um contexto árduo e quase sem perspectivas, um autor negro percorreu a sociedade carioca, saiu do morro e fundou a Academia Brasileira de Letras.

Machado de Assis é cria da favela, e foi justamente essa trajetória social e peculiar na historiografia literária que lhe permitiu tecer uma obra singular, sofisticada e capaz de representar a sociedade com tamanha precisão e crítica, através de uma visão pessimista, irônica e universal.