Jeferson Tenório

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Opinião

Banir livros: a velha prática fascista de eliminar o pensamento crítico

Não é de hoje que a relação entre a extrema direita e a arte entra em conflito. A estratégia de silenciar livros que trazem reflexões e questionamentos é histórica. Nenhum regime autoritário aceita a divergência de ideias.

Banir obras que desafiem o pensamento mais conservador faz parte da política fascista e que tem ressurgido de maneira vigorosa no mundo. Os Estados Unidos, por exemplo, têm registrado um número recorde de obras que foram proibidas de circular em escolas e bibliotecas.

Dados da American Library Association e a da PEN America demonstram que, entre os anos de 2022 e 2023, mais de 2.000 livros foram catalogados como "proibidos" ou "restritos" em 37 estados. É o maior número registrado em 20 anos. Entre os títulos proibidos estão "A vida de Rosa Parks", "O Diário de Anne Frank", "Caçador de Pipas" e "Conto de Aia".

Os argumentos para os pedidos de proibição seguem um padrão: trazem vocabulário inadequado, há cenas de sexo, discussão sobre o aborto, discursos contra o racismo e denúncias de preconceito contra minorias. Tudo isso para "salvar" e "proteger" as crianças e adolescentes de obras que vão contra a moral e os bons costumes.

No Brasil, as práticas de censura aos livros são velhas conhecidas. Durante o governo de Getúlio Vargas, por exemplo, as obras de José Lins do Rego e de Jorge Amado foram apreendidas e queimadas em praça pública acusadas de associação ao comunismo.

Durante a ditadura militar, na década de 1970, algumas obras também foram censuradas e proibidas de circular, caso do livro "Feliz Ano Novo", do escritor Rubem Fonseca, acusada de usar uma linguagem de baixo calão, sexo explícito e trazer contos de violência.

Com o avanço do bolsonarismo e consequentemente da ultradireita, os ataques aos artistas, livros e escritores se tornaram comuns no Brasil.

Em 2019, o então prefeito do Rio do Janeiro, Marcelo Crivella, determinou o recolhimento da HQ "Vingadores: a cruzada das crianças". A prefeitura argumentou que os quadrinhos traziam conteúdo sexual por haver dois personagens homens se beijando. Em 2023, a Secretaria de Educação de Santa Catarina determinou o recolhimento de nove obras, dentre elas o clássico "Laranja Mecânica".

Na semana passada, a diretora da Escola Ernesto Alves, em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, Janaina Venzon, fez um vídeo sobre meu livro "O avesso da pele", acusando-o de conter um vocabulário de baixo calão e cenas de sexo. Usando um discurso distorcido a diretora faz parecer que o livro é pornográfico e impróprio para adolescentes.

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Duas coisas nesse caso chamam a atenção:

1- Espanta a leitura rasa e superficial do livro vinda de uma educadora que, teoricamente, deveria saber fazer uma interpretação mais apurada do livro;

2 - A redução de toda discussão sobre racismo estrutural à "tal linguagem de baixo calão" e às poucas cenas de sexo do livro.

Ou seja, a diretora fez uma leitura completamente distorcida e deturpada do livro, apagando a sua verdadeira discussão: a morte de pessoas negras pela violência policial.

Por isso, reforço que "O avesso da pele" não é livro sobre sexo, mas uma reflexão sobre o letramento racial de jovens negros.

Por outro lado, não me surpreende que a acusação traga o sexo como argumento para censura, pois o pensamento ultraconservador não quer pensar a sexualidade, justamente porque isso significa pensar-se como pessoa.

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E pensar-se como pessoa, às vezes, é difícil e doloroso porque temos de lidar com nossas contradições, lidar com o melhor e o pior de nós.

A arte e a literatura têm um papel fundamental nesse sentido porque obrigam a nos olharmos com mais honestidade.

Mas, como se sabe, ultradireita e o bolsonarismo não estão interessados na verdade dos fatos, tampouco querem olhar para si de modo honesto. Então, usam como estratégia as mentiras, notícias falsas, distorções e um uso nocivo do discurso religioso para atacar tudo aquilo que diverge de seus ideais conservadores.

Ou como diria o escritor Paulo Scott, autor do livro "Marrom e Amarelo": "O fascismo não gosta de literatura".

O que nos alenta é saber que arte e a literatura já sofreram com ataques durante séculos, mas chegaram, até hoje, com força para resistir aos ataques tacanhos e grosseiros de um conservadorismo cínico, que não está preocupado com uma educação de qualidade para crianças e adolescentes, mas comprometidos com uma agenda reacionária e fascista.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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