Governo sofre apagão sanitário e o vírus prevalece
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Ninguém disse ainda, talvez por autopiedade, mas o governo de Jair Bolsonaro sofre um apagão sanitário. Não há ministro da Saúde. Inexiste uma política nacional de gerenciamento da pandemia.
Sob críticas de um presidente que se recusa a presidir a crise do coronavírus desde Brasília, governadores e prefeitos adotam providências desencontradas. Medidas de socorro financeiro a pessoas e empresas esbarram na burocracia.
Contra esse pano de fundo tisnado pela descoordenação, o vírus prevalece. E Bolsonaro faz piada: "Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda toma tubaína, disse, entre risos, numa entrevista ao repórter Magno Martins.
Pela primeira vez, o número de mortos num único dia ultrapassou os quatro dígitos: 1.179 —uma nova morte a cada 73 segundos. O total de cadáveres já roça a casa de 20 mil: 17.971.
Coube ao médico Dimas Covas, à frente do comitê de enfrentamento da crise montado pelo governo de São Paulo, pronunciar o resumo mais fiel do flagelo: "Estamos perdendo essa batalha contra o vírus. Essa é a realidade. O vírus, nesse momento, está vencendo a guerra."
Ironicamente, a guerra torna-se mais funesta num instante em que o Ministério da Saúde ganha a aparência de uma junta militar. Sem titular há cinco dias, desde que o oncologista Nelson Teich pediu demissão, a pasta é gerida interinamente pelo general Eduardo Pazuello.
Nesta terça-feira, o interino promoveu alterações dignas de um ministro efetivo. Pazuello promoveu substituições em cargos estratégicos. Nomeou nove militares do Exército. Juntaram-se a outros sete efetivados anteriormente, formando uma tropa de 16 fardados.
Somando-se ao grupo o próprio general Pazuello e o coronel Antônio Élcio Franco Filho, promovido de secretário-executivo adjunto para secretário-executivo substituto, chega-se a um total de 18 militares. Eles têm algo em comum além da farda: nenhum possui formação médica.
No gogó, o governo assegura que a trincheira da Saúde funciona normalmente. Mas uma cena captada nesta terça-feira escancarou a anormalidade. Num dia em que a contabilidade de mortos anotou novo recorde, nenhum militar deu as caras na entrevista coletiva em que o ministério usualmente atualiza as estatísticas da pandemia e informa sobre seus planos.
Durante pouco mais de meia hora, duas servidoras civis embromaram os repórteres discorrendo sobre uma campanha de aleitamento materno e um programa de apoio psicológico a profissionais do SUS que atuam no combate à covid-19. Nenhuma palavra sobre respiradores. Nada a respeito da carência de leitos de UTI. Nem sinal dos testes para detectar o avanço da doença, obsessão do agora ex-ministro Teich.
Com atraso, o governo começa a pagar nesta quarta-feira a segunda parcela do vale corona de R$ 600. Saques e transferências só serão autorizadas no final do mês. A promessa inicial previa o repasse das duas primeiras parcelas em abril. O compromisso não foi honrado.
Pior: cerca de 8 milhões de brasileiros pobres só começaram a receber a primeira parcela do socorro nesta terça (19). Outros 4 milhões de brasileiros à tortura da espera na fila. E não há, por ora, um calendário para liberação da terceira parcela.
A burocracia inferniza também os pequenos empresários que o governo prometera socorrer. O ministro Paulo Guedes (Economia) bateu bumbo em março. Anunciou que, por determinação de Bolsonaro, não faltariam recursos para defender vidas, para a saúde e para os empregos. Pequenos negócios, disse ele, seriam protegidos.
Decorridos quase dois meses, os resultados são pífios. Prometera-se, por exemplo, irrigar os pequenos negócios com R$ 40 bilhões em créditos com juros camaradas de 3,75%. O dinheiro seria usado para pagar o contracheque dos trabalhadores durante a crise até o limite de dois salários mínimos. Apenas R$ 1,6 bilhão foi efetivamente emprestado. As demissões proliferam.
Nesta terça-feira, depois de uma espera exasperante de 24 dias, Bolsonaro sancionou uma lei aprovada pelo Congresso para instituir um programa de socorro a microempresas e empresas de porte médio. Prevê a concessão de empréstimos de até R$ 108 mil para as primeiras e de R$ 1,4 milhão para as segundas. Juros de 4,75%, com três anos para pagar.
Pela proposta aprovada no Congresso, as empresas teriam carência de oito meses para recuperar o fôlego antes de realizar o pagamento da primeira parcela, sem juros. Bolsonaro vetou esse trecho da lei.
O presidente passou na lâmina também um artigo que previa que os bancos não poderiam negar o empréstimo a empresas que tivessem restrições de crédito, mesmo que as dívidas atrasadas já estivessem anotadas em cartório.
De resto, a sanção presidencial não assegura a liberação imediata de crédito, pois as operações ainda dependem de regulamentação. Quer dizer: o risco de um novo fiasco não é negligenciável.
A inoperância não orna com a prioridade que Bolsonaro diz atribuir à economia. Se estivesse mesmo interessado em preservar os sinais vitais da atividade econômica, o presidente já teria convocado meia dúzia de reuniões ministeriais para cobrar a conversão de planos em realidade.
Bolsonaro prefere reiterar sua pregação em favor do retorno a uma normalidade que não existe. Aferrados à política do isolamento social, governadores transformam o presidente da República num asterisco. Ignoraram o decreto do capitão que incluiu no rol de atividades essenciais as academias de ginástica, os salões de beleza e as barbearias.
Nesta quarta-feira, o general Pazuello, chefe interino da junta militar da Saúde, editará um novo protocolo sobre a cloroquina, liberando o uso do medicamento não apenas para doentes terminais, mas para pacientes na fase inicial da covid-19.
O próprio Bolsonaro reconhece que a formalização de sua ideia fixa, refugada pelos ex-ministros da Saúde Henrique Mandetta e Nelson Teich, não altera a realidade atual. "O que é a democracia? Você não quer? Você não faz. Você não é obrigado a tomar cloroquina, agora, quem quiser tomar que tome."
É precisamente o que vem ocorrendo. Pacientes e médicos decidem quando utilizar a cloroquina, cuja serventia no combate ao coronavírus não tem comprovação científica e sujeita os doentes a efeitos colaterais.
Na mesma entrevista em que fez piada, gargalhou e voltou a tratar a cloroquina como poção mágica, Bolsonaro colocou em dúvidas os números divulgados pelo seu próprio ministério. Insinuou que governos estaduais estariam inflando o desastre.
"Temos muito vídeo de famílias enlutadas, no cemitério, reclamando que no atestado de óbito o problema nunca foi esse e saiu com vírus. Por que se faz isso?", indagou Bolsonaro, antes de desconversar. "Não quero responder aqui. Mas estamos tomando providências para abrir essa caixa-preta que está acontecendo em alguns estados."
Bolsonaro lança nova suspeição em direção aos governadores às vésperas de se encontrar com eles, nesta quinta-feira (21), numa videoconferência organizada por sugestão do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Nela, o presidente da República deve sancionar o projeto que concede socorro federal de R$ 60 bilhões para compensar a perda de arrecadação tributária que o vírus impôs às arcas estaduais e municipais.
Se o tom acusatório de Bolsonaro serve para alguma coisa é para sinalizar o seguinte: é próxima de zero a chance de a reunião virtual produzir algo parecido com uma política federativa de combate à pandemia. Ou seja: o vírus continuará ganhando a guerra.
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