Topo

Josias de Souza

Bolsonaro tem 729 dias para evitar destino semelhante ao do ídolo Trump

Aloísio Maurício/Fotoarena/Estadão Conteúdo
Imagem: Aloísio Maurício/Fotoarena/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

02/01/2021 05h59

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Criticado até por bolsonaristas —ora por ter escorado seu mandato no centrão, ora por ter enviado ao STF o doutor Kassio Nunes Marques— Jair Bolsonaro incorporou à sua resposta a legalização do aborto na Argentina. Atribuindo a novidade à volta da esquerda ao poder, sustenta que seus críticos favorecem o retorno do PT, do mesmo modo que fizeram os argentinos ao trocar o ex-presidente conservador Mauricio Macri pela chapa Alberto Fernández—Cristina Kirchner. "É isso o que vocês querem, a volta dessa turma?", provoca Bolsonaro.

O presidente ainda não se deu conta. Mas a analogia portenha perdeu o prazo de validade. Hoje, Bolsonaro precisa comparar-se ao ídolo Donald Trump, não a Macri, um derrotado pré-pandemia. Cavalgando a mesma sensação de invulnerabilidade que acomete Bolsonaro, Trump deixou-se infectar pelo vírus do negacionismo. Graças ao comportamento patológico, ganhou uma internação hospitalar por Covid e perdeu o trono da Casa Branca para Joe Biden, um rival tão carismático quanto uma pedra de gelo.

A partir deste sábado, 2 de janeiro de 2021, Bolsonaro dispõe de 729 dias para colocar em pé uma candidatura à reeleição. Queimou a largada ao retardar a compra de seringas e vacinas contra a Covid-19. De resto, já não pode fazer a mesma pose da campanha de 2018, pois virou-se do avesso no primeiro biênio do mandato. Vendera-se ao eleitorado como um político antissistema, anticorrupção e pró-liberalismo econômico. Hoje, está acorrentado ao sistêmico centrão, chefia uma organização familiar com a imagem rachadinha e dá de ombros para a agenda de reformas liberais do seu ministro da Economia, Paulo Guedes.

Especialista na fabricação de crises, Bolsonaro descobriu aos solavancos que o Planalto é a morada dos extremos. É o céu e o inferno. O concreto e o abstrato. A força e a impotência. A Presidência é um jarro transparente. Muda de cor conforme o conteúdo que se lhe despeje. O jarro do capitão está pela metade. Em janeiro de 2019, quando assumiu, tinha uma coloração de novidade. Hoje, tem a tonalidade crepuscular do lusco-fusco.

Bolsonaro chegou ao Planalto com duas bolas na marca do pênalti da popularidade: a Lava Jato e a perspectiva de crescimento econômico. Fez vários gols. Todos contra. Na economia, entregou um pibinho de 1,4% no primeiro ano de governo, quando ainda não havia coronavírus. Na política, verificou-se que sua cruzada anticorrupção era de vidro, e se quebrou com o desembarque de Sergio Moro do Ministério da Justiça.

Hoje, Bolsonaro mantém uma improdutiva parceria com o centrão. Há mais "toma lá" do que "dá cá". A distribuição de cargos assegurou uma momentânea blindagem no Legislativo, mas não impulsionou a agenda de reformas liberais no Congresso.

O tapete do governo tornou-se pequeno. O chorume que escorre pelas bordas inclui um ex-vice líder com dinheiro na cueca, dois filhos acusados de rachadinha (pode me chamar de peculato), um operador de rachadinhas em prisão domiciliar, dois líderes no Congresso investigados por corrupção, a companhia de uma primeira-dama com uma interrogação de R$ 89 mil na conta bancária, e o apoio a um réu na disputa pela presidência da Câmara.

O odor do melado vinha sendo encoberto pelo aroma do auxílio emergencial da pandemia, que caiu de R$ 600 para R$ 300. E foi extinto em 31 de dezembro. O compromisso de Bolsonaro com a austeridade fiscal é desafiado pelos pendores populistas do presidente. A recessão da pandemia elevou o número de desempregados para mais de 14 milhões de pessoas. O interesse pelas reformas é cadente.

O senso comum supõe que a Presidência pode tudo. Mas a verdade é que o presidente é como folha de árvore, sujeita aos humores de cada estação.
Sob holofotes, diz que faz e acontece. Terceiriza responsabilidades. Na solidão de sua poltrona, é governado pelo acaso. E rala os efeitos corrosivos da pandemia. À luz do sol, arrota independência. À sombra, prepara uma reforma ministerial para saciar apetites fisiológicos.

A Presidência é, fundamentalmente, aquilo que seus titulares fazem dela. Ao refugar a intransferível responsabilidade de presidir a pandemia, recusando-se a instalar em Brasília uma coordenação nacional da crise sanitária, Bolsonaro cedeu nacos de autoridade a estados e municípios. Ao sabotar o trabalho de governadores e prefeitos, revelou uma falta de rumo. Ao retardar uma vacinação que seus próprios assessores econômicos apresentam como pré-condição para retomada plena do crescimento, tomou o rumo do brejo. O mesmo brejo em que se afundou Trump.

Se o ocaso de Trump teve alguma serventia para Bolsonaro foi para mostrar que qualquer presidente pode reivindicar a reeleição, desde que tenha desempenho para isso.