Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Bolsonaro se dispõe a resolver problemas que o brasileiro não sabe que tem
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O mundo acha que o problema do Brasil é o vírus, agora vitaminado por uma legião de variantes —uma mais infecciosa que a outra. Submetido a cenas típicas de um colapso hospitalar, o brasileiro avalia que sua prioridade é a vacina. Engano. O problema do país é o risco de cair numa ditadura, informa Bolsonaro.
A característica fundamental da dificuldade de julgamento do brasileiro é ter que ouvir o presidente por mais de uma hora nas noites de quinta-feira para chegar à conclusão de que ele não tem nada a dizer. Na sua penúltima live, o capitão tocou tambores e clarins marciais sob um imenso telhado de vidro.
Já virou rotina. Bolsonaro irrompe numa rede social uma vez por semana. E anuncia que está disposto a resolver problemas que o país não sabe que tem. O roteiro é invariável. O presidente cria fantasmas. Assusta-se com eles. E se oferece para fazer o favor de livrar o Brasil dos riscos fantasmagóricos.
A cabeça de Bolsonaro funciona como um terreno baldio onde ele próprio atira a sujeira que alimenta sua psicose. "Como é fácil impor uma ditadura!", espantou-se. "Usam o vírus pra te oprimir", alertou. "Eu tenho como garantir a nossa liberdade, eu sou o garantidor da democracia", tranquilizou.
Em solenidade realizada na véspera, Bolsonaro usou máscara e defendeu as vacinas. Absteve-se de criticar restrições à circulação e lockdowns. Em timbre sereno, chegou a dizer que, no começo da crise, tais restrições foram adotadas para que os hospitais se equipassem. Ou seja: estava completamente fora de si.
O país não teve nem tempo para respirar aliviado. Horas depois da cerimônia, o general Eduardo Pazuello, suposto ministro da Saúde, divulgou um vídeo de conteúdo esquisito. Nele, assegura que o sistema de saúde, embora "muito impactado", ainda "não colapsou nem vai colapsar".
Nessa versão, o país estaria sendo vítima de um grande complô. Uma trama das filmagens feitas por enfermeiras e médicos mancomunados com a imprensa mequetrefe, e mais de 30 milhões de pessoas que simulam falta de ar em filas metafóricas que se formam nas UTIs de hospitais públicos e privados.
Para não perder o hábito de botar a culpa em alguém, Bolsonaro reiterou na sua live o lero-lero segundo o qual o Supremo Tribunal Federal o impediu de atuar na pandemia. Trata-se de uma lorota. A Suprema Corte apenas reconheceu que todos os entes da federação —União, estados e municípios— têm poder para atuar na área da saúde.
Médicos e cientistas dizem que o vírus se replica no Brasil porque fugiu ao controle. A solução é vacinar em massa. Enquanto a vacinação ocorre a conta-gotas, não resta senão restringir a mobilidade e o contato. Numa evidência de que há males que vêm para pior, Bolsonaro enxerga o problema pelo lado avesso.
Incapaz de prover vacinas na quantidade necessária, o presidente desqualifica a estratégia paliativa: "Em nome da ciência, da sua vida, você vai ficar em casa mofando. Uma pequena parcela da sociedade até pode ficar em casa mais tempo, mas a grande maioria não pode. Não pode produzir mais nada, todos vão sofrer."
Fazendo pose de São Jorge, o Messias Bolsonaro pega em lanças: "Não podemos deixar isso acontecer. Eu sou a pessoa mais importante nesse momento. Faço o que o povo quiser, devo lealdade ao povo." A certa altura, o capitão renova seu apreço pela ditadura militar.
É como se São Jorge desejasse não salvar a donzela, mas casar-se com o dragão: "Eu sou o chefe supremo das Forças Armadas. As Forças Armadas acompanham o que está acontecendo. As críticas em cima de generais, não é o momento de fazer isso. [...] Nós vivemos um momento de 1964 a 1985, você decida aí, pense, o que que tu achou daquele período. Não vou entrar em detalhe aqui."
Governar o Brasil não é tão difícil quanto Bolsonaro faz parecer. O horário é bom, o salário é razoável, há carro na garagem e jato no hangar. A geladeira está sempre cheia. E a cozinha do Alvorada é full time. De resto, há sempre a possibilidade de demitir o general Pazuello, que deve proporcionar uma ótima sensação.
No limite, há também a hipótese da renúncia do presidente. Não resolveria o problema das vacinas instantaneamente. Mas o Brasil se livraria de um conspirador. E Bolsonaro se libertaria dos seus fantasmas.
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