Topo

Josias de Souza

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Após ignorar Pfizer, governo compra vacina do jacaré com 7 meses de atraso

DeFodi Images/Colaborador Getty Images
Imagem: DeFodi Images/Colaborador Getty Images

Colunista do UOL

19/03/2021 16h02

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O governo aciona todos os seus tambores e clarins para alardear a aquisição de 138 milhões de doses de vacinas —100 milhões da Pfizer, 38 milhões da Jansen. A fanfarra marcial deveria ser substituída por uma marcha fúnebre, pois a compra chega com pelo menos sete meses de atraso. O que coloca o Brasil no final da fila da entrega dos imunizantes. A maior parte das vacinas só chegará ao Brasil no segundo semestre.

Em agosto de 2020, a Pfizer havia oferecido ao Ministério da Saúde 70 milhões de doses de sua vacina. O governo Bolsonaro ignorou a oferta. Nessa época, o laboratório já fechava contratos com outros países ao redor do mundo. O mesmo ocorria com a Jansen, da Johnson & Johnson.

Dois meses antes, o governo fechara a compra de 100 milhões de doses da vacina Oxford-AstraZeneca, numa parceria com a Fiocruz. Submetida à inépcia do general Pazuello e ao negacionismo do capitão Bolsonaro, a pasta da Saúde imaginou que poderia negligenciar todas as outras vacinas. Nessa época, a covid havia produzido pouco mais de 100 mil mortos no Brasil. Hoje, o brasileiro morre por falta de vacinas. E os cadáveres são contados em mais de 287 mil.

Em outubro, dois meses depois da oferta da Pfizer, Bolsonaro esnobou também a CoronaVac, vacina importada da China pelo Instituto Butantan, vinculado ao governo de São Paulo. Em encontro com governadores, Pazuello anunciou protocolo de compra de 46 milhões de doses. Mas foi desautorizado por Bolsonaro no dia seguinte. "Um manda, o outro obedece", resignou-se o general.

Nessa época, o presidente dizia que seu governo não compraria doses da CoronaVac nem mesmo se a Anvisa aprovasse: "A da China, lamentavelmente, já existe um descrédito muito grande por parte da população. Até porque, como dizem, esse vírus teria nascido lá", disse Bolsonaro. Hoje, a CoronaVac responde por cerca de 70% da vacinação a conta-gotas realizada no Brasil.

Em 8 de dezembro de 2020, começaram a correr o mundo as imagens da aplicação das primeiras doses da Pfizer, no Reino Unido. Embora estivesse acossado pelas circunstâncias, Bolsonaro não deu o braço a torcer. Ao contrário. Passou a desqualificar a vacina e o contrato do laboratório.

"Lá na Pfizer, tá bem claro lá no contrato: nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral", afirmou Bolsonaro. "Se você virar um jacaré é problema de você, pô. Não vou falar outro bicho porque vou falar besteira aqui, né? Se você virar super homem, se nascer barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino, eles não têm nada a ver com isso. E o que é pior: mexer no sistema imunológico das pessoas."

A vacina da Pfizer se espalhou pelo mundo. Israel, Estados Unidos, Canadá. Súbito, foi se achegando do mapa do Brasil. México, Chile, Costa Rica. Não há vestígio de vacinado que tenha virado jacaré. Sobreveio o Natal. A pilha de mortos roçava os 200 mil. Espremido, Bolsonaro deu de ombros: "Ninguém me pressiona para nada, eu não dou bola para isso."

Enquanto outros países faziam fila na porta dos laboratórios desde meados do ano, o presidente brasileiro esperava ser cortejado pelos fabricantes de vacinas.

"O Brasil tem 210 milhões de habitantes, um mercado consumidor de qualquer coisa enorme. Os laboratórios não tinham que estar interessados em vender para a gente?", indagou Bolsonaro. "Por que eles, então, não apresentam documentação na Anvisa? Pessoal diz que eu tenho que ir atrás. Não, não. Quem quer vender. Se eu sou vendedor, eu quero apresentar."

Hoje, Bolsonaro demite o ministro Pazuello sob elogios: "Fez um brilhante trabalho no Ministério da Saúde. (...) Não deixou, desde o ano passado, de fazer contratos para compra de vacina. O Brasil está fazendo o seu papel. É um dos países que melhor faz o seu papel no tocante à vacina".

Embora o presidente já tenha escolhido o cardiologista Marcelo Queiroga para a vaga de Pazuello, retardou a posse do novo ministro para permitir que o general assinasse os contratos de compra de vacinas. Crivado de investigações do Ministério Público, Pazuello obteve não um êxito gerencial a ser comemorado, mas um álibi.