Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Kátia para Araújo: 'Não engoli sapo, engoli jumento na China pelo meu país'
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Em condições normais, Ernesto Araújo e Kátia Abreu jamais dividiriam uma refeição. Mas a política às vezes impõe o estreitamento de certas inimizades. Por isso, o chanceler de Bolsonaro viu-se compelido a convidar a senadora para almoçar. Deu-se em 4 de março, nove dias depois que ela se elegeu presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado. A indigestão só veio agora. Com mais de vinte dias de atraso, Araújo utiliza o repasto como munição contra a pressão do Legislativo para levar sua cabeça à bandeja.
Crítica contumaz da aversão ideológica de Araújo à China, Kátia revelou durante o almoço no Itamaraty que o pragmatismo fortalece o estômago. "Certas pessoas acham que não devem engolir sapo", disse a senadora. "Eu não engoli sapo, chanceler. Engoli jumento na China pelo meu país." Especialista em agronegócio e estudiosa do comércio com os chineses, a senadora esteve na China algumas vezes. "Em respeito aos chineses, comi jumento frito, assado e cozido. É uma iguaria para eles. E eu sou uma mascate. Para mim, chanceler, o freguês sempre tem razão."
Araújo resumiu as três horas de conversa com Kátia em dois tuítes. Num, descreveu o almoço como "cortês". E alfinetou: "Pouco ou nada falou de vacinas. No final, à mesa, disse: 'Ministro, se o senhor fizer um gesto em relação ao 5G, será o rei do Senado.' Não fiz gesto algum." Noutro tuíte, anotou: "Desconsiderei a sugestão inclusive porque o tema 5G depende do Ministério das Comunicações e do próprio presidente da República, a quem compete a decisão última na matéria."
Foi como se Araújo declarasse, com outras palavras, mais ou menos o seguinte: "A pressão dos congressistas para me derrubar não tem nada a ver com pandemia ou vacinas. Está relacionada a um lobby em favor da empresa chinesa Huawei." A insinuação voltou-se contra o autor. Até a semana passada, a cúpula do Legislativo avaliava que a política externa do governo Bolsonaro estava no buraco. Agora, até parlamentares governistas acham que Araújo começou a jogar terra em cima de si mesmo. A pressão pelo sepultamento aumentará.
Senado vê digitais de Bolsonaro
Disseminou-se no Senado a impressão de que Bolsonaro e seus filhos, sobretudo o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), avalizaram o movimento de Araújo. A suspeita tornou-se praticamente uma certeza depois que a máquina do bolsonarismo nas redes sociais cuidou de crivar Kátia Abreu de ataques. A senadora chamou Araújo de "marginal".
"O Brasil não pode mais continuar tendo, perante o mundo, a face de um marginal", disse Kátia. "Alguém que insiste em viver à margem da boa diplomacia, à margem da verdade dos fatos, à margem do equilíbrio e à margem do respeito às instituições. Alguém que agride gratuitamente e desnecessariamente a Comissão de Relações Exteriores e o Senado Federal."
Quando esteve no Itamaraty, Kátia Abreu equipava-se para priorizar dois temas na comissão que passou a presidir: a requalificação do relacionamento com a China, maior parceira comercial do Brasil; e a reabilitação da imagem ambiental do país, crucial para retirar do papel o acordo entre o Mercosul e a União Europeia.
As vacinas se tornaram uma obsessão duas semanas depois, quando Kátia e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) enviaram carta à vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, pedindo que o governo americano considere a hipótese de vender para o Brasil doses excedentes de vacinas. Hoje, Kátia coordena o esforço do Senado para tentar apressar a obtenção de mais imunizantes no exterior. O Itamaraty frequenta esse esforço na condição de estorvo.
Freguês sempre tem razão
Ao relatar sua conversa com Araújo a colegas de Senado, Kátia Abreu disse ter mencionado ao chanceler a necessidade de evitar o boicote à tecnologia chinesa no leilão que definirá a implantação do 5G no Brasil. Nas palavras da senadora, os chineses aceitam que o Brasil diga que não venderá terras a estrangeiros, mas não ficarão inertes diante de um eventual veto à tecnologia apenas porque vem da China. Receia que o Brasil sofra retaliações caso subverta a competição empresarial. Disse que, nessa hipótese, o agronegócio brasileiro se insurgiria contra Bolsonaro.
Em relação ao meio ambiente, Kátia disse a Araújo, segundo contou aos colegas, algo assim: "Não estou perguntando o que o senhor acha da política ambiental do Brasil. Me interessa o que os nossos fregueses europeus estão achando. Sou adepta da máxima de que o freguês sempre tem razão."
A senadora prosseguiu: "Esqueça os governos europeus. Não se trata de birra do Emmanuel Macron [presidente da França], ele faz o que seus eleitores querem. E não cabe a nós definir o que os europeus vão comer. Temos de assegurar a qualidade do produto. Sou verde, contra o desmatamento. A não ser que o senhor tenha condições de virar as costas para a Europa, chanceler. Tem?"
Não é a primeira vez que Kátia e Araújo se desentendem. A dupla começou a se estranhar em março de 2019. Nessa época, o chanceler lecionou numa aula magna do Itamaraty: "Queremos vender soja e minério de ferro, mas não vamos vender nossa alma à China".
Não interessa a cor do gato
A frase levou Kátia a escrever uma carta para Araújo. Nela, a senadora pediu ao ministro das Relações Exteriores que rezasse: "Senhor ministro Ernesto Araújo, li que o senhor é um homem temente a Deus. Também tenho fé e peço-lhe que reze, em português e em mandarim, para manter e ampliar nossas relações comerciais com a China. É a coisa certa a fazer."
Já nessa época, a senadora dizia que "não é justo" que Araújo "venha causar desassossego e provocar turbulências com declarações que podem nos tirar uma grande fatia do nosso mercado." A senadora informou ao chanceler: "Mais de 80% da soja brasileira é exportada para os chineses."
Em matéria de comércio, Kátia segue a máxima atribuída a um velho dirigente do Partido Comunista da China. Parodiando Deng Xiaoping —"Não interessa se o gato é branco ou preto, o que importa é que ele mate o rato"—, a senadora diz que não importa se o comprador é comunista ou capitalista, desde que ele faça suas compras no Brasil.
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