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Josias de Souza

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Bolsonaro transforma a Presidência da República numa repartição fora da lei

Sem máscara, presidente Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores em São Paulo - Wanderley Preite Sobrinho / UOL
Sem máscara, presidente Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores em São Paulo Imagem: Wanderley Preite Sobrinho / UOL

Colunista do UOL

13/06/2021 05h08

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A má notícia é que Bolsonaro passou a exercer o cargo de presidente à margem da lei. Transgride até leis que sancionou. A péssima notícia é que ele faz isso impunemente. A junção da ilegalidade com a impunidade converteu a Presidência da República numa repartição fora da lei.

Faltando um ano e quatro meses para as eleições de 2022, Bolsonaro já percorre o país como candidato. Desrespeita a legislação eleitoral de duas formas. Faz das inaugurações comícios. E faz comícios sem inaugurações, como ocorreu ao final de passeios de motocicleta realizados em Brasília, no Rio e em São Paulo.

Em seus deslocamentos, Bolsonaro promove aglomerações proibidas por estados e municípios. Ignora os poderes conferidos a governadores e prefeitos pela Constituição e reafirmados pelo Supremo Tribunal Federal em abril de 2020.

Por onde passa, o presidente discursa contra medidas sanitárias restritivas. Finge ignorar o fato de que sancionou em fevereiro do ano passado a lei da pandemia, número 13.979, que prevê a adoção de providências excepcionais como isolamento e a quarentena.

Em julho de 2020, Bolsonaro assinou a lei 14.019, que torna obrigatório o uso de máscaras de proteção individual em espaços públicos e privados. Além de dar de ombros para sua própria decisão, o capitão constrange o ministro Marcelo Queiroga (Saúde) com a cobrança de estudos para flexibilizar o uso da máscara.

A lei 12.401, de 2011, contém artigos que colocam na ilegalidade o uso da cloroquina no tratamento da covid em hospitais da rede pública. Proíbe "em todas as esferas de gestão do SUS o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento [...] experimental ou de uso não autorizado pela Anvisa".

Não há aval da Anvisa para receitar cloroquina no combate ao coronavírus. O que não impede Bolsonaro de continuar trombeteando seu remédio predileto. Nos últimos dias, passou a equiparar a cloroquina às vacinas, tachando-as levianamente de "experimentais."

Nos seus passeios de moto, permeados de aglomerações, Bolsonaro não percorre apenas o asfalto, mas o Código Penal, cujo artigo 268 estabelece pena de detenção de um mês a um ano para quem "infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa".

Noutro artigo, o de número 132, o Código Penal sujeita a uma pena de detenção de três meses a um ano as pessoas que expõem a vida ou a saúde de terceiros a perigo direto e iminente.

Como se tudo isso fosse pouco, a CPI da Covid coleciona depoimentos e documentos que colocam Bolsonaro em litígio com o artigo 196 da Constituição. Anota o seguinte: "A saúde é direito de todos e dever do Estado..." Na guerra contra o vírus, o capitão fez o pior o melhor que pôde.

A CPI busca o assessoramento de juristas para definir os crimes que serão imputados ao presidente por ter retardado a compra de vacinas, transformando em política pública o charlatanismo cloroquínico. Há evidências de que Bolsonaro atuou como lobista de laboratórios, intermediando a compra de insumos da Índia. E não abandonou até hoje o papel de garoto-propaganda da cloroquina.

Autoconvertido num infrator serial, Bolsonaro disse no comício deste sábado, em São Paulo, que é o único chefe de Estado no mundo que diz o que pensa sem temer as consequências. Deve sua tranquilidade a dois aliados tranca ruas.

Augusto Aras, o procurador-geral que não procura, tranca a via que conduz às ações penais. Arthur Lira, o presidente da Câmara, tranca a gaveta que armazena os pedidos de impeachment. Tanta proteção estimula Bolsonaro a acreditar na tese segundo a qual depois da impunidade vem a bonança.