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Josias de Souza

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Bolsonaro ajusta Grito do Ipiranga às suas conveniências: Vitória ou Morte!

Mateus Bonomi/Agif - Agência de Fotografia/Estadão Conteúdo
Imagem: Mateus Bonomi/Agif - Agência de Fotografia/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

06/09/2021 04h50

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Bolsonaro converteu o 7 de Setembro numa tormenta com ares de "ultimato". Que pode evoluir para a "ruptura" se a República não compreender o significado do novo Grito do Ipiranga: "Vitória ou morte!". Foi mais ou menos essa disjuntiva que o capitão bradou quando discursou para um grupo de evangélicos dias atrás: "Eu tenho três alternativas para o meu futuro. Estar preso, ser morto ou a vitória. Pode ter certeza, a primeira alternativa, ser preso, não existe."

Se o fascínio que a retórica fatalista de Bolsonaro ainda exerce sobre uma fatia do eleitorado ensina alguma coisa é que a democracia, ao contrário do que parecia, não é algo garantido na vida do brasileiro como o ar que se respira. Com tantas crises reais sobre a mesa —crise sanitária, crise social, crise econômica, crises hídrica e energética...— Bolsonaro conseguiu a proeza de produzir uma encrenca que o país não precisava ter. Inaugurou uma crise do sistema democrático.

O apoio social ao governo do neo-imperador é minoritário e declinante. Hoje, não chega a um quarto do eleitorado. Mas é perturbadora a percepção de que multidões irão às ruas no Dia da Independência para expressar sua dependência a uma alucinação em que a "ameaça comunista" se mistura a um hipotético "complô" de ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral para impedir um presidente imaculado de governar e para fraudar a sucessão de 2022, elegendo seu principal adversário.

Quem acompanha as declarações feitas por Bolsonaro nas últimas semanas e o eco que elas produzem nas redes sociais fica com a impressão de que o bolsonarismo vive um impasse. Os devotos mais velhos do presidente, que já adquiriram experiência, agarram-se a uma nostalgia intervencionista que não tem futuro. Sonham com a volta do AI-5 e a imposição de mordaça à imprensa. Os mais jovens, sem experiência, agem como se pensassem que não há passado. Aderem animadamente ao coro: "Eu autorizo!".

O Brasil revogou o Ato Institucional número 5, principal torniquete da ditadura, no fim da década de 70. Ao final da de 80, o país realizou a primeira eleição presidencial direta em 29 anos. No intervalo, o brasileiro degustou a suspensão da censura à imprensa e a anistia. Bem antes de tudo isso, em 1947, Octávio Mangabeira, raposa da velha cepa udenista, definiu a democracia brasileira como "uma plantinha tenra que precisa ser regada todo dia". Sem vocação para a jardinagem, Bolsonaro dedica-se a ameaçar as instituições. É como se desafiasse a "plantinha" a provar que já virou uma árvore frondosa.

A redemocratização do Brasil veio inserida num ciclo de bons ventos que sopraram no mundo entre 1974 —ano da Revolução dos Cravos, em Portugal— e 1989 —ano da queda do Muro de Berlim. Nesse intervalo benfazejo de 15 anos, caíram a ditadura da Espanha e, uma a uma, as ditaduras latino-americanas. Na Europa do Leste, a superestrutura que se imaginava invulnerável desmanchou-se. Sobreveio, no final de 1991, a dissolução da União Soviética.

O sentimento que traduz mais adequadamente a ilusão predominante nessa época está representada em "O Fim da História", tese publicada em 1992 pelo americano Francis Fukuyama. O autor vendeu a ideia de que o triunfo da economia de mercado, associado a democracias conscientes, triunfara irreversivelmente.

Fukuyama tornou-se na ocasião uma espécie de garoto-propaganda da nova ordem mundial, do neoliberalismo, da globalização, do fim das ideologias. Hoje, sua teoria é apenas um estigma na biografia do autor. A história continuou fornecendo novos finais, por vezes repetidos. Abriu-se um parêntese no roteiro democrático. A extrema-direita ascendeu na Polônia e na Hungria, compondo governos que pisoteiam o ordenamento jurídico distraídos. Há ditadura na Turquia. Há ditadura também na vizinha Venezuela. Houve Donald Trump na Casa Branca. Há Bolsonaro no Brasil.

Surgiram teóricos mais sofisticados —ou menos superficiais— que Fukuyama. Entre eles os professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, autores do livro Como as Democracias Morrem. O que inspirou a dupla foi o receio de que Trump produzisse estragos irremediáveis ao sistema democrático americano. Nos Estados Unidos, as instituições prevaleceram sobre a irascibilidade de Trump e sua tentativa de desmoralizar o sistema eleitoral e de impedir a posse do sucessor Joe Biden, instigando os devotos que invadiram o Capitólio.

E quanto ao Brasil, até que ponto as instituições democráticas suportarão as investidas de Bolsonaro?, eis a pergunta que pisca no letreiro cada vez que o capitão dá uma de cachorro louco. Líderes políticos e magistrados dizem que é preciso pacificar o país. A pregação parte de uma ilusão. A ilusão de que é possível pacificar o presidente.

Bolsonaro também foi infectado pelo pior tipo de ilusão que pode acometer um presidente. A ilusão de que preside. Presidido pelas adversidades que o cercam, Bolsonaro mastiga a democracia pelas beiradas enquanto os outros se iludem com a possibilidade de moderá-lo.

Elegeu-se esgrimindo teses do tipo "com esse Congresso não dá...", "com esse Judiciário não dá...". Empossado, submeteu as Forças Armadas a um processo de venezualização, seduzindo generais com vantagens corporativas e contracheques. Anulou a Procuradoria-Geral da República com a indicação de um procurador-geral que não procura. Com a pandemia a pino e a holding familiar da rachadinha nas manchetes, comprou com o déficit público a chave da gaveta da presidência da Câmara, abarrotada de pedidos de impeachment.

Em julho, o Datafolha informou que a maioria dos brasileiros considera Bolsonaro incompetente (58%), desonesto (52%), pouco inteligente (57%), falso (55%), indeciso (57%), autoritário (66%) e despreparado para o exercício do cargo de presidente (62%). Submetido à evidência de que o projeto da reeleição subiu no telhado, o capitão intensificou os ataques à urna eletrônica, colocou em dúvida o calendário eleitoral de 2022 e passou a insinuar que há na Suprema Corte e na Justiça eleitoral ministros que operam para eleger Lula. Daí para a invasão do Congresso é um pulo.