Topo

Josias de Souza

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Retórica de Bolsonaro embute confissão de que Amazônia virou terra sem lei

Colunista do UOL

10/06/2022 18h46

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Ao discursar para os chefes de estado reunidos na Cúpula das Américas, em Los Angeles, Bolsonaro referiu-se com respeito e compostura ao caso do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, sumidos desde domingo passado na região do Vale do Javari, no Amazonas. Quem ouviu os comentários tóxicos que o presidente brasileiro fizera anteriormente, teve a impressão de que o Bolsonaro do encontro internacional estava completamente fora de si.

No evento patrocinado pelo governo americano, Bolsonaro disse que, "desde o primeiro momento, nossas Forças Armadas e a Polícia Federal estão em uma busca incansável." Rogou a Deus para que os desaparecidos "sejam encontrados com vida". Em dois comentários radioativos feitos na véspera e no início da semana, o presidente havia praticamente culpado as vítimas pelo próprio infortúnio ao sustentar que o jornalista e o indigenista meteram-se numa "aventura não recomendável" em área perigosa.

A nova manifestação de Bolsonaro é tardia, insuficiente e constrangedora. Chega tarde porque a essa altura o governo brasileiro já está pendurado nas manchetes de ponta-cabeça ao redor do mundo. Restou a sensação de que Bolsonaro, espremido numa viagem ao estrangeiro, diz com atraso e por pressão o que se absteve de declarar na primeira hora por convicção.

A manifestação não é suficiente porque vem desacompanhada de evidências sobre a suposta "busca incansável". Nesta quinta-feira, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso deu prazo de cinco dias para que o governo apresente relatório sigiloso sobre as providências que adotou para localizar os desaparecidos. As palavras do presidente constrangem porque expõem a contradição da sua retórica.

No despacho em que requisitou informações sobre as operações para localizar Dom e Bruno, o ministro Luís Barroso anotou: "Sem uma atuação efetiva e determinada do Estado brasileiro, a Amazônia vai cair, progressivamente, em situação de anomia, de terra sem lei. É preciso reordenar as prioridades do país nessa matéria."

Bolsonaro decerto dirá nos próximos dias que Barroso, um dos seus desafetos de estimação, tenta interferir no governo para desgastá-lo. Entretanto, tomado pela desconexão de sua oratória, o presidente dá razão ao magistrado.

Bolsonaro repetiu nos Estados Unidos que o Brasil protege a Amazônia e oferece "exemplo para o mundo na questão ambiental." O mesmo Bolsonaro refere-se à região amazônica como um pedaço do mapa tão inseguro que transforma o trabalho de um indigenista e de um jornalista numa "aventura" letal.

É como se o presidente confessasse que, no Vale do Javari, uma área acossada por traficantes, pescadores, caçadores, madeireiros e garimpeiros ilegais, vigora a Lei da Selva. Ali, a Funai deixou de existir. A bandidagem prevalece até sobre as Forças Armadas, que têm a responsabilidade legal de zelar pela integridade do território nacional nas zonas fronteiriças.