Josias de Souza

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Opinião

Apagão cibernético fez de Falcon vingador cínico da raça humana

Falcon é filho da inteligência artificial. Pertence à última geração da família de softwares concebidos pela CrowdStrike. Veio ao mundo para proteger contra ataques virais os computadores plugados a supercircuitos. De repente, numa atualização sistêmica de rotina, Falcon infectou a si mesmo. Mergulhou máquinas ao redor do mundo no temível BSoD, o Blue Screen of Death —ou Tela Azul da Morte. Sobreveio a pane cibernética global de sexta-feira.

Seletivo, Falcon deu defeito apenas no Windows, o sistema operacional que roda em cerca de 70% dos computadores do mundo. Ao longo da manhã, enquanto o apagão convulsionava aeroportos, derrubava aplicativos bancários e desligava hospitais e emissoras de TV da tomada, a CrowdStrike e a Microsoft revezavam-se na divulgação de perturbadoras mensagens tranquilizantes.

Primeiro, alardeou-se que o curto-circuito fabricado por Falcon fora identificado e isolado. Caos! Depois, propagou-se que o problema estava resolvido. Alvoroço!! Perto do meio-dia, alegou-se que "ações de mitigação" estavam em curso. Ficou entendido, então, que um simples restart não seria suficiente para resgatar as máquinas do Deep Blue, o azul profundo em que permaneciam mergulhadas.

Para suspender a pane tecnológica, seria necessário recorrer, suprema ironia, ao socorro primitivo de um ser humano. Apenas as mãos do homem poderiam executar indispensáveis procedimentos técnicos hipoteticamente rudimentares. Coisas como fazer o login, entrar no modo de segurança do computador e deletar uma linha com os códigos maliciosamente injetados no circuito pelo software que deveria protegê-lo.

Quem visita o site da CrowdStrike aprende que um hacker pode destruir um negócio "em apenas 62 minutos". Faltou à dona do Falcon antever a autoinvasão doméstica. Apenas na sexta-feira, a empresa levou um tombo de 11% na Bolsa de Nova York. Amargou uma perda estimada em notáveis US$ 9 bilhões.

Hoje, graças à façanha da fabricante de Falcon, uma das empresas que lideram o mercado global de proteção cibernética, qualquer criança de cinco anos é capaz de chegar a três conclusões singelas em poucos minutos:

1 - A "esperteza" de vendedores de "segurança cibernética" engole o dono quando é grande demais, a ponto de negligenciar o teste preventivo de atualizações dos seus sensores antivírus.

2 - Não há inteligência artificial capaz de resistir à ignorância natural de gestores de grandes conglomerados que escoram a segurança de suas infraestruturas num único fornecedor de "proteção" contra invasores maliciosos.

3 - A tecnologia pós-moderna dos grandes conglomerados de internet permite controlar tudo no universo, exceto a própria tecnologia.

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Alvo de uma execração irrefletida, Falcon ainda será reconhecido como um vingador cínico da raça humana. Muita gente, aliás, caiu de amores por ele à primeira vista. Gente que traz enterrado na alma um quê de Rubem Braga, o cronista que se orgulhava de pertencer a um tempo em que o telefone era preto e a geladeira branca.

Mesmo o usuário mais moderninho de equipamentos eletrônicos, do tipo que liga sua máquina sem medo de produzir uma hecatombe planetária, logo reconhecerá as virtudes de Falcon. Graças ao software vingador, descobriu-se que o computador, quando encontra a Tela Azul da Morte, depende de uma pessoa de carne e osso para alcançar uma ressurreição online.

É como se Falcon, em plena era da substituição da mão de obra pelos robôs, proporcionasse à humanidade a sensação alentadora de que, no final da linha, a cibernética depende da superioridade intelectual de um digno representante do complexo universo químico-anímico-somático, um reles apertador de botões.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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