Medo disfarça sadismo do apoio à barbárie policial contra o outro
Há um quê de hipocrisia no medo que 51% dos brasileiros sentem da polícia. Por baixo do temor detectado pelo Datafolha esconde-se o sadismo enrustido dos que enxergam a violência policial como ação dos heróis da lei contra a bandidagem.
Não existe lugar mais improvável para obter uma boa política de segurança do que o pântano ideológico sobre o qual a esquerda prega o respeito aos direitos humanos e a direita pede "direitos humanos para quem for direito". Entre dúvidas morais e culpas, prolifera a sensação de que o endurecimento do Estado contra o crime é o que boa parte da população deseja —mesmo que na base da truculência.
Com o tempo, expandiram-se as fronteiras da barbárie policial tacitamente consentida. Entre o malufismo e o bolsonarismo, os políticos que supostamente representam a sociedade esqueceram de maneirar. É eloquente, por exemplo, a aliança estratégica das bancadas da bala e da bíblia no Congresso, uma dando suporte à outra.
Apoiados pelos parlamentares que desejam armar a população, os congressistas religiosos pegam em armas pelo fim do aborto —mesmo que a gravidez seja fruto de um estupro ou que a mãe corra risco de morrer. E endossam qualquer iniciativa a favor da proliferação das armas. Luta-se pela vida em gestação e, simultaneamente, despreza-se a vida já existente. Tudo isso num país em que são vergonhosas as condições da saúde, educação, transportes e... segurança pública.
Não faz muito tempo, o ator Wagner Moura foi aplaudido nas salas de cinema ao encenar no filme Tropa de Elite o capitão Nascimento, personificação da brutalidade policial. Aplaudiu-se a glamourização da tortura. Sem remorsos ou dúvidas ético-existenciais. Era como se a violência fosse o seu próprio pretexto. E o brasileiro diante da tela, vibrando de mãos limpas, barbarizando sem sair da poltrona.
Aos pouquinhos, a brutalidade filmada na vida real foi assumindo configurações inéditas. A PM de São Paulo, por exemplo, foi pilhada intimidando velório de criança, jogando trabalhador da ponte, executante ladrão de sabão pelas costas, assassinando estudante de medicina desarmado, agredindo idosa...
Quem não é policial nem bandido costumava considerar-se imune à barbárie. Apoiava a truculência, desde que fosse contra o outro. Mas a proliferação de agressões e mortes provocadas por intervenções policiais expôs o risco que qualquer um corre. Daí o medo crescente e a sensação de que não convém conversar com um policial, a menos que seja em legítima defesa. O pedaço decente das polícias deveria reagir contra o naco da sociedade que endossa a brutalidade policial.
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