Rondônia deveria banir as queimadas, e não livros de Machado de Assis
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O governo de Rondônia mandou censurar livros de Machado de Assis, Euclides da Cunha, Rubem Fonseca, Franz Kafka, Mario de Andrade, Ferreira Gullar, Nelson Rodrigues, entre outros, ordenando que fossem recolhidos das escolas por "conteúdos inadequados", segundo reportagem de Paulo Saldaña e Ricardo Della Coletta, da Folha de S.Paulo. Sob críticas, voltou atrás, adotando padrão que Bolsonaro usou várias vezes ao ser pego no pulo. Aliás, o governador, Coronel Marcos Rocha (PSL) deve seguir o capitão, indo para o Aliança para o Brasil.
Quando um dos maiores clássicos de nossa literatura como "Memórias Póstumas de Brás Cubas" é alvo de censura por um Estado, primeiro deve-se cogitar se os administradores públicos estão bem de saúde. Uma comissão deveria analisar se o governador e o secretário de Educação, Suamy Vivecananda, estão no controle de suas sanidades mentais. Feito isso, o passo seguinte é tentar entender o milagre que leva a um governo que tem coisas mais importantes a fazer, como combater desmatamento ilegal, queimadas na floresta amazônica e trabalho escravo contemporâneo, ainda ter tempo sobrando para o obscurantismo.
Não dá para dizer que não tínhamos sinais - fortes finais - de que esse contexto degradante de guerra cultural estúpida não estava desenhando uma campanha contra o passado e o futuro.
Só para citar exemplos a partir do ano das últimas eleições gerais. O Colégio Santo Agostinho, no Rio de Janeiro, retirou o livro "Meninos Sem Pátria", de Luiz Puntel, da lista de leitura do sexto ano em 2018. Lançado em 1981, o livro - um clássico, já em sua 23ª edição - trata da história de uma família que precisa sair do Brasil após o jornal onde o pai trabalha ser invadido durante a ditadura militar e ele passar a receber ameaças. História que conta como foi viver a infância e adolescência longe de casa.
Grupos de pais se revoltaram contra um livro que ajuda na construção da empatia por considerá-lo "comunista". Não é o primeiro caso, nem será o último, com Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas defendendo a criação de listas de temas e publicações proibidas. Sim, em muitos lugares estamos revivendo o Index Librorum Prohibitorum criado pela Igreja Católica em 1559.
Isso sem contar que o material didático para conscientizar jovens de que espancar amigos gays e lésbicas não é legal, chamado equivocadamente de "kit gay", é criticado por pessoas que nunca leram nada a respeito, mas acreditaram em políticos que dizem o que elas devem pensar. Ou não pensar. Em outubro de 2018, Biblioteca Central da Universidade de Brasília anunciou que livros sobre temáticas relacionadas a direitos humanos estavam sendo rasgados e riscados.
Hoje, vivemos um governo em que o culto à ignorância ganhou centralidade, com um presidente que reclama que livros didáticos têm palavras demais. A burrice tem sido defendida com unhas e dentes - burrice entendida não como a falta de conhecimentos técnicos, ortográficos ou matemáticos, mas como manifestação da negação do conhecimento e como o ódio a quem o detém ou quem busca aprendizado.
Desesperado por exposição na mídia o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, transformou um gibi com um mísero beijo entre dois rapazes numa cruzada medieval contra a Bienal do Livro, no ano passado. E, por conta de três páginas que traziam uma visão sobre identidade de gênero e diversidade sexual que o desagradou, o governador de São Paulo, João Doria Jr., mandou funcionários da educação recolherem cartilhas, deixando estudantes do oitavo ano ficaram sem as outras 141 páginas com conteúdos de arte, ciências, educação física, geografia, história, inglês, matemática e português. Ambos tiveram que voltar atrás.
Já escrevi isso várias vezes aqui: quanto tempo leva entre esses episódios e começarem a queimar livros, em praça pública, feito "Fahrenheit 451"? Na obra, bombeiros colocavam fogo em livros, proibidos sob o argumento de que opiniões individuais tornavam pessoas antissociais e infelizes. O pensamento crítico era combatido. Quem lia era preso e "reeducado". Se uma casa tinha livros, bombeiros eram chamados para por tudo a baixo.
Não estou comparando Rondônia a um regime totalitário, mas a História lembra que quando a opinião pública se acovardou ou foi conivente, estudantes queimaram montanhas de livros de Einstein, Mann, Freud, entre outros. A Alemanha de 1933 "purificou pelo fogo" as "ideias imundas" deles, da mesma forma que, durante a Contra-Reforma, a Inquisição purificou com fogo a carne, o sangue e os ossos daqueles que ousaram discordar. No Estado e no Brasil, resiste-se, mas a ofensiva não para.
O país conta com formação precária dos docentes e com alunos que saem do Ensino Médio analfabetos funcionais. Assiste a roubo, ausência e baixa qualidade da merenda escolar. Paga baixos salários aos professores e não fornece estrutura suficiente em todas as escolas. Mantém um teto orçamentário, aprovado no governo passado, que restringe novos investimentos em uma área que ainda está distante de um mínimo aceitável.
O problema do Brasil não são os livros de Machado de Assis, mas governantes que acham possível construir uma sociedade melhor e mais justa jogando na lata do lixo os instrumentos usados para refletirmos sobre nossos erros e acertos.