Moro vai atrás de punk e porteiro, mas não de miliciano
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Não deixa de causar espanto a seletividade do Ministério da Justiça sob o comando do ex-juiz federal Sergio Moro. A pasta pediu abertura de inquérito para investigar roqueiros paraenses que organizam um festival de punk e hardcore chamado "Facada Fest".
O evento usou cartazes de divulgação que o governo federal considerou ofensivos à honra do presidente da República. O mesmo ministério, contudo, deixou de incluir Adriano da Nóbrega, chefe do Escritório do Crime e ligado a Flávio Bolsonaro, na lista dos criminosos mais procurados, quando divulgou essa relação em janeiro. O líder miliciano foi morto no último dia 9.
Os organizadores do festival divulgaram nota afirmando que foram intimados a depor na Polícia Federal e que veem o caso como uma tentativa de censura.
O material traz, por exemplo, a caricatura de Bolsonaro, vomitando fezes sobre a Amazônia trajando um cuecão com a bandeira dos Estados Unidos, e outro, um palhaço Bozo com a faixa presidencial, empalado em um lápis - que os organizadores afirmam ser uma crítica aos cortes na Educação. O festival é realizado desde 2017.
Nas redes sociais, o ministro disse que a iniciativa não foi dele, mas que "poderia ter sido". Para ele, "publicar cartazes ou anúncios com o presidente da República ou qualquer cidadão empalado ou esfaqueado não pode ser considerado liberdade de expressão".
A facada que o então candidato à Presidência da República levou é, sob todos os aspectos, abominável. Mas daí transformar a questão em assunto de Estado, tratando isso como ameaça real e usando a Polícia Federal (ou seja, dinheiro do contribuinte) para investigar cartazes de mau gosto feitos por bandas de rock é preocupante para uma pasta que deveria estar atolada de trabalho.
Mas parece que o ministro tem tempo de sobra, como pode ser visto pela desnecessária voltinha que deu em um tanque de guerra em visita ao perímetro externo da Penitenciária Federal da Papuda, em Brasília, nesta quarta (26).
Não é a primeira vez que Moro atua como advogado de defesa do presidente. No dia 30 de outubro do ano passado, o ministro da Justiça pediu à Polícia Federal e à Procuradoria-Geral da República que investigassem o porteiro do condomínio onde mora Jair Bolsonaro após o depoimento que ele deu à Polícia Civil no curso da apuração das execuções da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. No Parlamento e entre juristas, Moro foi criticado por usar o seu cargo para o que foi considerado intimidação da testemunha de um caso.
No dia 19 de fevereiro, o ex-presidente Lula depôs à Polícia Federal, após pedido de Sergio Moro, por ter dito, em um pronunciamento após sair da cadeia, que o Brasil tem um miliciano no governo. O ministro exigia que fosse investigado o cometimento de crime contra a honra de Bolsonaro.
Os advogados do petista dizem que o inquérito foi instaurado citando o artigo 26 da Lei de Segurança Nacional, restolho ditatorial.
É natural que determinados empregados, com medo de perder os benefícios simbólicos do cargo que ocupam, não ousem contradizer o chefe. Moro já demonstrou mais de uma vez que faz de tudo para não desagradar Bolsonaro.
No programa Roda Viva, do dia 20 de janeiro, diante de perguntas contundentes dos jornalistas da bancada, afirmou sem rodeios: "Não contrario publicamente o presidente". Mesmo se comportando como bom soldado, seu chefe achou que ele deveria ter sido mais incisivo em sua defesa, ao invés de sair pela tangente, e fez beicinho.
O atentado a bomba contra a sede da produtora do Porta dos Fundos, na véspera de Natal, recebeu de Moro um silêncio ensurdecedor. Em um contexto de intolerância deflagrada, a falta de manifestação da autoridade responsável por questões de direitos fundamentais no Poder Executivo após um ataque terrorista soa como anuência. Pior, como endosso.
Esse silêncio se espalha como um vírus, infeccionando a democracia e oferecendo a fundamentalistas religiosos, fanáticos políticos, racistas, fascistas, incels, milicianos ou imbecis mal-intencionados a certeza da impunidade para que imponham mais medo.
O ministro Sergio Moro fez sua carreira tentando construir a imagem de lutador contra o crime organizado. Ironicamente, tem feito muito pouco para combater o crime organizado de madeireiros, garimpeiros, grileiros e pecuaristas que formam quadrilhas e montam milícias para invadir e manter terras indígenas, levando embora suas riquezas. A Funai, vale lembrar, segue sob sua responsabilidade.
Após o assassinato de mais duas lideranças indígenas da etnia Guajajara, o ministro autorizou o envio da Força Nacional para o Maranhão, em 9 de dezembro. E afirmou que a Polícia Federal conduziria as investigações. Melhor seria se tivesse tomado coragem, caminhado alguns metros até o vizinho Palácio do Planalto e sugerido a seu chefe que parasse de incentivar a invasão de territórios pertencentes a comunidades tradicionais através de seus discursos sobre a exploração econômica desses locais.
E o Adriano da Nóbrega?
Moro usa a Polícia Federal na investigação de qualquer um que "ataque a honra do seu chefe", porém não se dignou a colocar o miliciano Adriano da Nóbrega, apontado como comandante do Escritório do Crime, um grupo de extermínio, na lista dos bandidos mais procurados do Brasil, divulgada no dia 31 de janeiro, por seu ministério.
Adriano, que estava foragido há mais de um ano, acusado de assassinatos e de jogo ilegal, foi morto, no dia 9 de fevereiro, em uma operação com policiais da Bahia e do Rio.
No gabinete do então deputado estadual e, hoje, senador Flávio Bolsonaro, trabalhavam a mãe e a esposa de Adriano. O miliciano foi homenageado mais de uma vez pelo filho do presidente na Assembleia Legislativa do Rio. O próprio Jair Bolsonaro o chamou de "um brilhante oficial", em discurso no Congresso Nacional, quando era deputado federal, mesmo após o miliciano ter sido condenado a quase duas décadas de prisão pela morte de um guardador de carros que teria denunciado extorsões de policiais a moradores de uma comunidade.
Desde que morreu, o presidente tem passado pano para a biografia de Adriano.
A justificativa para ficar fora da lista não se sustentava tecnicamente, uma vez que outros dois milicianos do Rio menos perigosos que ele estavam na relação. Mas justificava-se politicamente, dado a proximidade do criminoso com o clã presidencial, conectados via Fabrício Queiroz.
É inacreditável que uma pasta com tantas atribuições parece ter tempo livre para ir atrás de punks e porteiro, mas parece não exortar o presidente da República a garantir que denunciados por corrupção sejam demitidos do governo.
Como é o caso de Marcelo Álvaro Antônio, do Turismo, acusado de ser o responsável por um laranjal, nas eleições de 2018, em Minas Gerais. Ele não só segue forte, como será o superior hierárquico da nova secretária nacional de Cultura, Regina Duarte.
Por fim, Moro precisa tomar cuidado para não confundir defesa da honra com culto à personalidade de um líder máximo, porque é isso o que governos autoritários fazem. E, no caminho, fazer uma autocrítica.
No dia 30 de junho do ano passado, ele estimulou o culto à sua própria personalidade, vendo a si mesmo como algum profeta. "Eu vejo, eu ouço", tuitou ele com fotos dos protestos a favor da Lava Jato que ocorreram naquele domingo. A declaração, como bem lembrou a rádio Jovem Pan, fazia referência à passagem do livro de Êxodo, em que diz que Deus estava acompanhando o sofrimento dos judeus no Egito. Que, por um acaso, era seu povo escolhido entre todos na Terra.
O Êxodo tem pragas e recompensas, leis e punições, e um povo sofrido e humilhado que não é libertado por sua própria ação, mas que precisa de um líder que o retire da escravidão — ação que conta com intervenção divina. Na manifestação da avenida Atlântica, no Rio, uma faixa dizia a Moro: "O senhor nos livrou das trevas", segundo registro da Folha de S.Paulo. O senhor não era o Deus cristão, mas o então juiz federal.
Antes que ele e Bolsonaro comecem a anunciar que são "o caminho, a verdade e a vida" (João 14:6), as instituições precisam dar um toque que isso não pega bem. Republicano é saber que, quanto maior o cargo, maior deve ser a aceitação à crítica e que é possível separar ameaças reais das imaginárias. Talvez lembrando a eles que, como diz Eclesiastes 1:2, a vaidade pode ser um pecado terrível.