Coronavírus: Suspensão de salários não era única maldade na MP de Bolsonaro
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Jair Bolsonaro revogou a permissão explícita para que empresas suspendessem o contrato de seus empregados por quatro meses, sem pagamento de salários, sob a desculpa de "qualificação" do trabalhador por cursos on-line, nesta segunda (23).
Como isso acontece menos de um dia após ele ter publicado a Medida Provisória 927/2020, que trouxe mudanças nas regras trabalhistas para enfrentar a crise do coronavírus, imagina-se que o presidente não leu o texto antes de assiná-lo - talvez porque "tinha muita coisa escrita" nele.
Ou não viu problema de enviar uma MP para o Congresso propondo que um trabalhador viva de fotossíntese por quatro meses sem garantir a ele uma fonte de renda, como o seguro-desemprego. Sim, outra possibilidade é que, para Bolsonaro, somos todos samambaias.
A medida provocou revolta nas redes sociais, no Congresso Nacional, em associações de juízes e procuradores, em movimentos e organizações sociais, em empresários socialmente responsáveis, enfim, em seres humanos ainda capazes de sentir empatia.
Em meio à saraivada de críticas, ele disse que o governo entraria com ajuda nos meses em que a empresa interrompesse o salário. Se isso já era verdade, por que não publicou essa informação junto com a Medida Provisória? Incompetência ou pelo prazer de deixar ainda mais preocupados os trabalhadores, jogando gasolina no fogo.
Contudo, o artigo 18 da Medida Provisória 927/2020, publicada neste domingo (22), era o maior, mas não o último abacaxi desta frutífera colheita.
Por exemplo, a MP afirma que, pelo prazo de 180 dias, os auditores fiscais do trabalho apenas irão "orientar" os empregadores que cometerem infração. Exceções foram feitas à falta de registro (desde que a partir de denúncia), a situações de grande e iminente risco, acidentes de trabalho fatal, trabalho infantil e trabalho escravo. Se os fiscais encontrarem qualquer outra coisa problemática, vão poder apenas dar conselhos.
O prazo elástico de seis meses significa que o governo está dando carta branca aos empresários que operam à margem da lei para que possam atravessar a crise da forma que for necessário (dando um migué na saúde e segurança dos empregados). E dizendo a eles que, no momento de retomada, não precisam se preocupar com incômodos, como fiscais do trabalho. Ou seja, os fins justificam os meios.
Outro exemplo: a MP também afirma que, para evitar demissões por conta da crise, "o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito" passando por cima da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), de normas e de acordos coletivos.
Isso pode ser usado para criar coisas tão preocupantes quanto quatro meses à míngua.
De acordo com o advogado trabalhista Ivandick Rodrigues, doutor em Direito do Trabalho pela USP e professor de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, a Reforma Trabalhista abriu a possibilidade do negociado se sobrepor ao legislado, mas colocava uma série de condicionantes, inclusive proibindo essa negociação direta entre patrão e empregado em casos de funções que pagam pouco. Segundo ele, com a MP, isso cai. Todas as proteções podem ser deixadas de lado - menos o que está no artigo 7º da Constituição.
Ou seja, permite que acordos sejam firmados entre um trabalhador pobre e uma grande empresa sem a participação de um representante do sindicato. Desconectado de sua categoria, o indivíduo terá o único poder de dizer "amém" para os empregadores em nome da esperança de manter ao emprego.
As medidas do governo se esforçam para transferir o custo da crise para as costas de empregados, desempregados e informais, evitando investir dinheiro público para proteger realmente pessoas e negócios. Pelo contrário, o coronavírus funciona como uma carta-branca para fazer o que bem entender com as regras de compra e venda de mão de obra. Mantendo o texto como está, o impacto do coronavírus não será apenas nos pulmões das pessoas, mas naquele patamar mínimo de saúde e segurança garantido aos trabalhadores.