Covid-19: Debate sobre saúde pública na eleição dos EUA irá para vala comum
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Por Mayra Cotta*, especial para a coluna
Em Nova York, de onde escrevo, leitos emergenciais estão sendo improvisados no meio do Central Park, em ginásios esportivos e em dormitórios estudantis. Por causa da lotação dos necrotérios, há dezenas de caminhões frigoríficos estacionados ao redor de hospitais para dar conta do número de corpos que não para de aumentar. Milhares de moradores estão, neste exato momento, avaliando se a falta de ar que estão sentindo é grave o suficiente para irem ao hospital, de onde sairão com uma conta que não vão conseguir pagar. Ou de onde sairão direto para as valas coletivas que estão sendo abertas agora.
Neste momento, a cidade responde por 5.663 das 18.592 mortes por Covid-19 nos Estados Unidos, que registra 495.249 infectados.
Sou uma das 92.384 pessoas que contraíram o coronavírus em Nova York - não foi fácil, mas estou melhorando. Recebemos todos os dias notícias de amigos e colegas que estão doentes, internados ou morreram ou que perderam algum familiar para o vírus. Estamos diariamente contando os mortos. E enquanto sentamos perto da janela em busca de um pouco de sol, separados das ruas desertas pelo vidro, ouvindo o som das sirenes das ambulâncias que agora virou música ambiente constante, recebemos o alerta em nossos celulares de que Bernie Sanders está saindo das primárias democratas.
Pois é, há eleições presidenciais acontecendo no meio de tudo isso.
A morte e a política sempre estiveram intimamente conectadas. Mas nada como uma pandemia global durante uma das eleições mais relevantes da história recente dos Estados Unidos para nos lembrar da intensidade dessa conexão.
A desanimadora crise da democracia representativa resolveu juntar forças com a sombria realidade da necropolítica nos EUA. A apatia que, em geral, dava conta de descrever a relação das pessoas com a política institucional se transforma agora em um torpor profundo até então desconhecido para nossa geração. No Estado do Wisconsin, as primárias aconteceram essa semana, contra todas as recomendações de distanciamento social. Quem quis votar, precisou colocar máscaras e luvas e se arriscar. O resultado foi a participação de apenas 3% do eleitorado.
E porque a política tem sempre os seus momentos sublimes de ironia fina, o tema mais polêmico entre os democratas durante as primárias foi a saúde universal e gratuita.
Enquanto Bernie Sanders e Elizabeth Warren encamparam a pauta de que o Estado deve prover saúde de qualidade a todos e todas, Joe Biden e demais candidatos insistiram (e continuam insistindo) que o atual sistema privado parcialmente subsidiado pelo governo funciona bem.
"As pessoas amam os seus planos de saúde e elas amam seus empregadores por pagarem o plano de saúde delas", eles disseram. Soubemos agora que 17 milhões de pessoas ficaram desempregadas apenas neste último mês. Essas pessoas perderam não somente seu emprego, como também seu plano de saúde em meio a uma pandemia global.
Ainda mais relevante para entendermos a profundidade da crise em que estamos é o curioso fato de que os mesmos eleitores democratas que votaram em Biden defendiam, em sua maioria, as políticas públicas de Bernie. Como o senador de Vermont mesmo disse durante o discurso em que anunciou sua saída das primárias, a sua campanha perdeu a corrida presidencial, mas ganhou a batalha das ideias. Foi uma campanha que conseguiu conquistar corações e mentes, mas não conseguiu fazer as pessoas de fato acreditarem que a política institucional era capaz de mudar.
Mais fácil convencer as pessoas criadas na terra do neoliberalismo desenfreado de que o Estado deve prover saúde universal, do que persuadi-las de ser possível transformar as instituições representativas para de fato refletirem a vontade do povo.
No fundo, o desafio de Joe Biden é o mesmo de Bernie Sanders. Ambos precisam mostrar às pessoas que o engajamento político ainda faz sentido, que a política que promove e instrumentaliza a morte pode ser transformada para que todas e todos tenham o que precisam para viver bem, e que as instituições representativas podem ser capazes de refletir e agir de acordo com as aspirações coletivas da pessoas.
O mais provável no caso de Biden, contudo, é que sua campanha simplesmente se conforme em torcer para que o repúdio a Donald Trump seja suficiente para levar pessoas às urnas em números minimamente significativos. Não só isso como o seu projeto político é apenas de retorno - retorno aos anos Obama, retorno à política sem Trump, retorno ao normal. Tudo está bem, só precisamos tirar o atual presidente e colocar um cara decente em seu lugar. E Joe é um cara decente.
O movimento ao redor da campanha de Bernie é bem mais ousado. Apesar da inevitável decepção com a saída das primárias, sabemos que desmobilizar jamais seria uma opção. Quem faz parte do movimento "Not Me. Us" ("Não eu. Nós") entende que a política não se constrói só com eleições e que a única maneira de conseguir transformar profundamente a sociedade em que vivemos é a organização popular permanente.
Se a democracia representativa está em crise, precisamos imaginar novas maneiras de realizar a democracia. Se a necropolítica (quando o Estado define quem vive e quem morre) é a regra, tomemos seriamente a tarefa de que há todo um novo mundo a ser construído.
A resposta para a morte e a apatia é a possibilidade de futuro, que se constrói por pautas como saúde universal, empregos verdes, educação superior gratuita, reforma da justiça criminal, direito à moradia, apenas para citar algumas. Bernie não é o dono delas, mas o catalizador da organização da esquerda nos Estados Unidos, uma organização que se estrutura para além dele.
E quando o novo ciclo presidencial chegar, muitas serão as pessoas capazes de representar esse movimento formado por uma geração mais jovem, que sente que instituições formais de poder não as representam e que o Estado não se importa se ela vive ou morre.
Nesse contexto, a posição ocupada por Bernie Sanders já conta com uma provável herdeira para 2024, a deputada democrata Alexandra Ocasio-Cortez - que irrita tanto Donald Trump quanto Wall Street e o estabilishment de seu próprio partido.
(*) Mayra Cotta é advogada e pesquisadora do Departamento de Política da New School for Social Research em Nova York.