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Leonardo Sakamoto

Demissão de Moro instiga paranoia de Bolsonaro, explica Christian Dunker

Presidente Jair Bolsonaro e ministro da Justiça, Sergio Moro, em cerimônia no Palácio do Planalto - Reprodução
Presidente Jair Bolsonaro e ministro da Justiça, Sergio Moro, em cerimônia no Palácio do Planalto Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

25/04/2020 18h03

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Adélio Bispo, o porteiro do condomínio, Marielle Franco, filho 04, Inmetro. Mesmo quem acompanha cotidianamente as declarações de Jair Bolsonaro estranhou a sopa de assuntos aparentemente desconexos do pronunciamento da tarde desta sexta (24). Por isso, pedimos ajuda profissional.

A coluna conversou com Christian Dunker, psicanalista, professor titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e um dos coordenadores do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP.

"Há um processo paranoico, que ajuda a entender por que o presidente, neste momento, toma decisões contraproducentes e que acabam causando problemas políticos", afirma.

Após Sergio Moro acusa-lo de tentar interferir na Polícia Federal em nome de seus interesses e pedir demissão, o presidente rebateu o, agora, ex-ministro da Justiça e Segurança Pública em uma coletiva à imprensa. Mais do que isso, Bolsonaro orientou seus seguidores mais fieis a se descolarem de Moro, sugerindo - no discurso - que o ex-juiz da Lava Jato é arrogante e oportunista.

Contudo, isso não era o único conteúdo do pronunciamento.

Não é novidade que Bolsonaro se sente perseguido dentro de seu próprio governo e confia em um círculo reduzido de auxiliares, além dos três filhos políticos. Mas há momentos em que isso fica mais aparente. Como na tarde desta sexta.

Segundo o professor, há momentos do pronunciamento que indicam uma desconexão da realidade por parte do presidente, principalmente nos trechos em que nexos não se justificam.

Dunker afirma que conseguimos entender o que ele quis dizer usando o contexto do pronunciamento e corrigindo automaticamente a sua fala, mas que a forma com a qual ele diz explica muito sobre o que ele de fato pensa.

Vamos a trechos comentados pelo psicanalista:

Marielle discursa na Câmara Municipal do Rio em 2018 - RENAN OLAZ/AFP - RENAN OLAZ/AFP
Marielle discursa na Câmara Municipal do Rio em 2018
Imagem: RENAN OLAZ/AFP

1) Adélio e Marielle

"Será que é interferir na Polícia Federal quase que exigir e implorar a Sergio Moro que apure quem mandou matar Jair Bolsonaro? A Polícia Federal de Sergio Moro mais se preocupou com Marielle do que com seu chefe supremo. Cobrei muito dele isso aí. Não interferi. Eu acho que todas as pessoas de bem no Brasil querem saber, e entendo, me desculpe seu ex-ministro, entre meu caso e o da Marielle, o meu tá muito menos difícil de solucionar. Afinal de contas, o autor foi preso em flagrante delito, mais pessoas testemunharam, telefones foram apreendidos. Três renomados advogados, em menos de 24 horas, estavam lá pra defender o assassino. Isso é interferir na Polícia Federal?"

Para Dunker, o presidente mistura na mesma formulação o caso da execução da vereadora Marielle Franco (que vitimou também seu motorista Anderson Gomes, em março de 2018) e o atentado que sofreu pelas mãos de Adélio Bispo de Oliveira, em setembro de 2018. A Polícia Federal apontou, em inquérito, que ele agiu sozinho, o que irritou o presidente, que acredita em uma conspiração.

"O trecho sugere um processo de descarilhamento de ideias, que vão acontecendo por uma associação que não é exatamente lógica. A parte fundamental do argumento não é dita", afirma.

"Seria o caso de perguntar: o que os advogados que estão defendendo o sujeito têm a ver com sua interferência na Policia Federal? Essa relação, na verdade, passa por uma grande ilação persecutória."

Moro e Bolsonaro - Pedro Ladeira - 29.ago.2019/Folhapress - Pedro Ladeira - 29.ago.2019/Folhapress
Imagem: Pedro Ladeira - 29.ago.2019/Folhapress

2) Marielle e o Porteiro

"Será que pedir à Polícia Federal, quase que implorar, via ministro, para que fosse apurado, no caso porteiro da minha casa 58, na Avenida Lúcio Costa 3100?"

Em outubro de 2019, veio à tona a informação de que o porteiro do condomínio em que o presidente tem residência no Rio afirmou que Élcio Queiroz, um dos acusados de executar Marielle, foi autorizado a entrar pela casa 58 (pertencente a Bolsonaro). Ele se dirigiu para a 65 (de Ronnie Lessa, outro acusado de executá-la). O porteiro disse que a voz seria do presidente, mas Jair estava em Brasília. Carlos Bolsonaro também mora no condomínio.

Para Christian Dunker, esse trecho representa uma forte oscilação no nível do discurso do presidente. "O nível de exemplificação, citando a casa 58, é um dos pontos destoantes do escopo do pronunciamento." Segundo ele, o presidente vai entrando em detalhes relacionados à sua vida pessoal sem uma razão para isso.

O psicanalista inicialmente considerou que o presidente desenvolvia um personagem para gerar empatia com as pessoas. "Mas essa falta de separação entre público e privado tende a ser uma dificuldade que ele tenha de subjetivar essa distância", explica. "Isso acontece em crianças."

3) Porteiro e o Filho 04

"É desmoralizante para um presidente ouvir isso, mais ainda, externar. Ou, não trocar, porque não foi trocado, sugerir a troca de dois superintendentes entre os 27. O do Rio, a questão do porteiro, a questão do meu filho, o 04, o Renan, que agora tem 20, 21 anos de idade, quando num clamor da questão do porteiro, do caso Adélio, que os dois ex-policiais teriam ido falar comigo, também apareceu que o meu 04 quatro teria namorado a filha deste ex-sargento [Ronnie Lessa]. Eu comecei a correr atrás, primeiro chamei meu filho: 'abre o jogo'. 'Pai, eu sai com metade do condomínio, nem lembro quem é essa menina, se é que eu estive com ela'."

"A oscilação discursiva, novamente, é acima do prumo, mesmo para Bolsonaro", afirma Dunker. "As razões privadas começam a tomar tal tamanho dentro dele que ele não consegue medir suas palavras e se impedir de dizer certas coisas. Daí, surgem declarações como essa."

Polícia esteve no condomínio onde vive Ronnie Lessa, suspeito de assassinar a vereadora carioca Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes. O condomínio é o mesmo onde o presidente Jair  Bolsonaro (PSL) tem casa no Rio de Janeiro - Sergio Moraes/Reuters - Sergio Moraes/Reuters
Polícia esteve no condomínio onde vive Ronnie Lessa, suspeito de assassinar a vereadora carioca Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes. O condomínio é o mesmo onde o presidente Jair Bolsonaro (PSL) tem casa no Rio de Janeiro
Imagem: Sergio Moraes/Reuters

4) Porteiro e Adélio

"Será que é interferir na Polícia Federal exigir uma investigação sobre esse porteiro? O que aconteceu com ele? Ele foi subornado? Ele foi ameaçado? Ele sofre das faculdades mentais? O que aconteceu pra ele falar com tanta propriedade um fato que, segundo ele, existiu há, praticamente, um ano atrás?"

Dunker avalia que Bolsonaro, ao falar da necessidade de investigar se o porteiro "sofre das faculdades mentais" mistura elementos da história do empregado de seu condomínio com a de Adélio Bispo - este sim declarado inimputável pela Justiça e recolhido para tratamento psiquiátrico por tempo indeterminado.

"Mas, para ele, é necessário investigar o porteiro porque é preciso investigar Adélio", diz.

"Delírio é a negação de fatos, a pessoa está vendo coisas que não existem. Já o delírio parcial é mais uma organização, uma intencionalidade, uma crença que adere aos fatos", afirma. "É como dizer que o mundo vai acabar no ano 2000. Dai, no ano 2000 o sujeito corrige, dizendo que ele vai acabar daqui a pouco. E se agarra àquilo."

5) Inmetro

"Quando eu vi o Inmetro, que é um órgão parecido até, logicamente cada um na sua função, com a Polícia Federal, com a Polícia Rodoviária Federal, com a Secretaria da Cultura, do Marcelo Álvaro Antônio, entre tantas outras. Eu falei: 'Paulo Guedes, eu vou implodir o Inmetro. O que eu descobri lá, nós não podemos deixar o povo sofrer dessa maneira. Queriam trocar 1,6 milhão de tacógrafos das viaturas e cada tacógrafo custando R$ 1.900. Quem ia pagar a conta era o motorista de caminhão, o motorista van, de ônibus."

Compreende-se que o presidente quis dizer que interfere em instituições para ajudar a população. A questão é que ele não disse isso.

Para o psicanalista, há uma desorganização sintática. O Inmetro não é parecido com a Polícia Federal, que não é parecida com a Secretaria de Cultural, pelo contrário.

Ele diz que, considerando que o presidente está falando sob pressão, em um momento em que está se sentindo traído, é natural desorganizar o pensamento.

Contudo, o desvio do presidente ao longo do discurso vai sempre na mesma direção: estou sendo perseguido. "Não é porque você também está sendo perseguido que não é, de fato, uma pessoa paranoica. Mas como a perseguição nas altas esferas de poder ganha estratos reais, isso acaba passando despercebido. Mas ela está lá."

Manifestante segura bonecos de Bolsonaro e Sergio moro em ato em favor do presidente - Rahel Patrasso/Reuters - Rahel Patrasso/Reuters
Apesar da popularidade, Moro constantemente nega ter pretensão de disputar a eleição presidencial
Imagem: Rahel Patrasso/Reuters

6) Adélio e Filho 04

"Nos quase 16 meses que esteve a frente do Ministério da Justiça, o senhor Sergio Moro sabe que jamais lhe procurei para interferir nas investigações que estavam sendo realizadas. A não ser aquelas, não vi interferência, mas quase como uma súplica sobre o Adélio, o porteiro, e meu filho 04."

"Qual a relação está fazendo entre as três coisas? Aqui deixa claro que tem uma convicção de algo perpassa os casos de Adélio, o porteiro e do filho 04, mas não deixa claro o quê", afirma Dunker.

O presidente acredita que a Polícia Federal deveria descobrir essa relação, mesmo que isso não tenha lastro na realidade.

Contudo, para o psicanalista, essa teoria, de dimensão conspiratória, só funciona caso não se admita a imprevisibilidade dos acontecimentos. Ou seja, o presidente não pode aceitar que Adélio tenha uma doença mental.

Por que isso significaria que uma pessoa desequilibrada se insurgiu contra ele e deu uma facada, sem estar a mando de alguém ou alguma instituição. Entre aceitar a aleatoriedade da vida e a impossibilidade de apontar um culpado, como sempre fez, prefere acreditar que Adélio, Marielle e porteiro escondem algo contra ele. Ele só não sabe o quê.