Covid-19: Uso de contêineres para mortos e vivos revela um Brasil precário
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Por conta da quantidade de mortos por Covid-19, contêineres frigoríficos estão sendo instalados em hospitais da rede pública de Manaus - cidade em que retroescavadeiras são usadas para sepultar em valas coletivas. Imagens de corpos dividindo espaço com pacientes internados no hospital pronto-socorro João Lúcio ganharam a imprensa, revelando a falta de estrutura para a garantir a dignidade de vivos e mortos.
Em meio a isso, há a figura onipresente do contêiner, símbolo da precariedade do Brasil, que surge como o remendo daquilo que deveríamos ser, mas não fomos suficientemente competentes para planejar.
Símbolo de governos que apontam para os céus e pedem ajuda a Deus por não acreditarem na ciência. E de parlamentares que lamentam os mortos em entrevistas mesmo após terem aprovado, na legislatura anterior, um teto de gastos públicos que limitou investimentos para a saúde. Nenhum país do mundo estava preparado para o impacto da pandemia. Contudo, existe uma diferença entre governos que conseguiram mitigar ou manejar o colapso com aqueles que assistiram a uma tragédia humanitária e até colaboraram com ela.
O governo federal também apontou que contêineres são o caminho para o enfrentamento da pandemia no sistema penitenciário nacional. Ao invés de enviar para a prisão domiciliar os casos de pessoas idosas e imunodeprimidas, além de grávidas e mães de filhos pequenos, ele insiste na construção de estruturas metálicas temporárias.
A Defensoria Pública da União (DPU), em manifestação contrária à proposta, lembrou que contêineres devem ser usados para mercadorias, não pessoas, e que seu uso para alojar presos é proibido tanto pela Constituição Federal quanto pela legislação internacional.
Além disso, é uma faca de dois gumes: ou temos celas-contêineres comuns, que são fornos para cozinhar presos, ou contamos com os caros modelos com isolação térmica - que, ainda por cima, podem ter sua estrutura usada como esconderijo de armas. Isso deve ser analisado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária nesta terça (28).
O Brasil precário faz questão de esquecer, mas dez jovens, entre 14 e 16 anos, morreram após um incêndio atingir o local onde dormiam as categorias de base do Flamengo, no Ninho do Urubu, centro de treinamento do clube, no dia 8 de fevereiro de 2019. O "alojamento" era formado por contêineres interligados.
O Flamengo não poderia ter hospedado os jovens naquele lugar, mas fez mesmo assim. Porque é mais barato pagar multas pela falta de licenciamento para o dormitório do que hospedar corretamente os meninos. Porque é mais importante pagar altos salários para jogadores do time principal e seus técnicos do que garantir qualidade de vida a outros trabalhadores menos favorecidos. Porque o Brasil precário se preocupa mais com títulos de futebol do que com vidas.
Nove das dez vítimas foram encontradas carbonizadas e só tiveram suas identidades reconhecidas por impressão digital ou exame de arcada dentária.
E falando na falta de preocupação com o futuro, um dos principais símbolos do Brasil precário são as escolas de lata. Não necessariamente feitas de contêineres, mas com o mesmo desconforto térmico e os ruídos dos modelos sem isolamento.
Parte delas nasceu como alternativa temporária. Mas acabou ficando. Retrato de um país que acha que um dia será grande, mas que funciona apenas de última hora, na base do remendo e com o orgulho do jeitinho.
Os sonhos desse país não cabem num contêiner, mas a sua realidade sim.