O "e daí?" de Bolsonaro é mais um capítulo do Brasil na "Era do Foda-se"
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O "e daí?" ao qual o presidente Jair Bolsonaro recorreu, nesta terça (28), ao ser questionado sobre o fato de o Brasil ter superado a China em número de mortos por Covid-19, com mais de 5 mil óbitos, tem o mesmo DNA do "foda-se" proferido pelo general Augusto Heleno em fevereiro. Não é um palavrão - antes fosse. Mas um lembrete: a República sou eu.
O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional havia conclamado o presidente a não ficar "acuado" pelo Congresso Nacional - que pressionava para ficar com uma parte maior do orçamento - e "convocar o povo às ruas". E soltou um "foda-se", captado pelo áudio de uma live. O problema é que essa breve expressão está grávida de tudo aquilo que a Constituição de 1988 e o processo de redemocratização quiseram deixar para trás.
"E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre", disse Jair, enquanto sua claque ria em frente ao Palácio do Alvorada. Para além do deboche e do desdém, a declaração contém tanta certeza de invencibilidade e de que as leis são para os outros, que é um perfeito exemplo da "Era do Foda-se".
Alertei que o Brasil estava entrando nesse período histórico no, agora longínquo ano de 2017, no que fui repreendido por quem atestava que as instituições estavam funcionando normalmente. O Congresso e do Supremo Tribunal Federal conseguem, aqui e ali, aplicar freios e contrapesos ao governo federal, mas o Poder Executivo tem muita força no Brasil. Ainda mais quando conclama seguidores contra as instituições. Pessoas vão às ruas, vestidas de verde e amarelo, para pedir um novo Ato Institucional número 5 - que, em 1968, permitiu à ditadura fechar o Congresso e descer o cacete geral. Chanceladas pelo poder central, fica por isso mesmo.
Isso, claro, tem se traduzido em ameaças de atentados contra presidentes do Legislativo e do Judiciário. E a ataques a governadores e prefeitos que resolvem implementar medidas de isolamento social a fim de reduzir o ritmo de contágio pelo coronavírus - e, assim, evitar uma sobrecarga no sistema de saúde. Como resultado desses ataques, temos mais perda de vidas.
Nesta quarta (29), o ministro do STF, Alexandre de Moraes, suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem ao cargo de diretor-geral da Polícia Federal. Atendeu, dessa forma, a um pedido do PDT, que defende que o presidente está querendo colocar uma pessoa que é amiga de seus filhos em uma posição que pode influenciar nas investigações das quais seus filhos são alvos.
Na sequência, milhares de mensagens circularam pelas redes sociais e aplicativos de mensagens pedindo o fechamento do STF e a prisão de seus membros. A Constituição? Foda-se.
Já escrevi isso aqui antes. Sabe aquele esforço para se preocupar com as consequências das próprias ações e palavras e, no mínimo, manter as aparências? No contexto em que estamos, ele se aposenta ou tira férias, mandando avisar que só dá as caras quando a democracia plena voltar. Até lá, cada autoridade ou membro da elite deste país pode falar ou fazer o que quiser, sem medo da repercussão negativa junto à população. Até porque, convenhamos, foda-se.
Alguns dizem que isso gera uma transparência sem igual na sociedade que nos levará a um patamar superior da existência no futuro e o melhor é tudo acontecer à luz do dia ao invés de se passar nos porões. Há uma falsa dualidade nessa história, como se fossem possíveis apenas duas opções: pessoas que fazem coisas erradas e são sinceras (como um presidente que contribui para o espalhamento de uma pandemia) e pessoas que fazem coisas erradas e mentem. Há a alternativa de fazer a coisa certa e ser sincero, mas - pelo visto - essa está no campo da ficção.
O mesmo "foda-se" que acreditamos ouvir quando vemos policiais militares levando vivo um vendedor ambulante, David Nascimento dos Santos, e, no dia seguinte, ele aparece morto. O rapaz de 23 anos havia saído de casa, em São Paulo, para esperar seu pedido de comida na rua e foi levado por PMs. Deixa dois filhos, segundo a Ponte Jornalismo, que relatou o caso. Câmeras de segurança registraram a cena.
A Era do Foda-se tem suas consequências, claro. Vendo autoridades darem de ombros para a razão, a população vai copiando. E passam a descumprir leis, regras e normas porque percebem que não valem muita coisa mesmo. No caso mais urgente, seguem as orientações do presidente, ignorando quarentenas, saindo de casa mesmo quando não há necessidade, contaminando e se deixando contaminar.
E, iniciado, o processo de derretimento das instituições e do respeito da população a elas não pode ser freado do dia para a noite. Como já disse aqui, a solução demanda nova pactuação política e social, aliada a muito suor em articulações para a construção de consensos - exatamente aquilo que um governo autoritário tem ojeriza. Por que um governo autoritário precisa do enfrentamento que cria inimigos reais e imaginários para sobreviver.
Quando falei pela primeira vez da Era do Foda-se, ponderei que a reação em cadeia em curso inevitavelmente nos levaria para o buraco, como a eleição em 2018, por vias democráticas, de uma figura antidemocrática através do voto de uma parte de uma população cansada do clima de "vale tudo" e de "ninguém é de ninguém". Passada essa fase, que, de fato, aconteceu, a questão é se essa reação vai enterrar a própria democracia.
O Brasil vai se tornando um palco de batalhas no qual o que importa é quem grita, xinga, ataca, espanca, mata mais. Cada um por si e Deus acima de todos. O respeito à vida? Foda-se.